Arquivo do mês: abril 2011

Chacal

Ricardo de Carvalho Duarte, ou Chacal, nasceu no Rio de Janeiro no dia 24 de maio de 1951. Seu pai, Marcial Galdino, saiu do Rio Grande do Sul com o exército gaúcho para o Rio de Janeiro na Revolução Constitucionalista de 1932, e por aqui ficou. Ricardo nasceu nos dourados anos 50 e passou sua infância, ora no apartamento onde morava em Copacabana, ora no sítio da família em Cinco Lagos, um vilarejo próximo de Mendes, no interior do Estado do Rio de Janeiro. Neste mês, percorreremos a poesia deste grande poeta carioca. Muito prazer, Chacal!

Tem texto do dia 31 aqui http://equivocos-pedrolago.blogspot.com
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SÓTÃO
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o sótão ficava entre o céu e o inferno.
um escada nos ligava ao banheiro e ao mundo.
degraus silenciosos.
o telhado mostrava seus segredos
de um buraco eterno no teto.
um armário com todos os livros/chaves
guardava cumplicidade e cupins ruminados.
os filhos malditos disfarçavam en/cruz/ilhadas
bem queimadinhos.
o sol amanhecia esperanças
amarelas e vermelhas nas janelas antigas.
e a vida foi vivida como mando o figurino.
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O jovem Ricardo foi criado em apartamento. O prédio ficava a cinco quadras da praia de Copacabana onde o menino pegava jacaré. Entre a praia e o prédio, ficava o Colégio Mallet Soares, onde estudou. Ali jogou futebol, voley e gostou do Fluminense. Seu amigo Sérgio Liuzzi, fora convocado para jogar voley no Botafogo, e depois o levou para o time. Fez um teste, foi aprovado. Após um treino, Ricardo se atrasou no vestiario e chegou na cantina para comer com o resto do time, após observar a todos, quietos, comendo, diante o silêncio que havia, exclamou: “Que onda chacal!”. Era uma gíria da época. Seu amigo Sérgio gostou, levou para a turma da praça e o apelido pegou. Assim, nascia o Chacal.
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NA PORTA LÁ DE CASA
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na porta lá de casa
tem dizendo lar romi lar
uma bandeira de papel
na porta lá de casa
as crianças passam
e se atiram no chão
e se olham por dentro
das bocas das palavras
na falta de qualquer espelho
na porta lá de casa
passa o amor o calor
de cada um que passa
na porta lá de casa
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Ao entrar no curso secundário do Colégio Estadual André Maurois, no Leblon, Chacal descobre novas percepções. Tudo era falado abertamente sob o lema “liberdade com responsabilidade”. Através do professor Ivo Barbieri, Chacal começa a ler avidamente Guimarães Rosa. Descobriu que “palavras tinham molas, dobravam esquinas”. Entrou num grupo de estudos sobre o materialismo dialético. No mesmo tempo, Chacal, foi fazer segurança de uma colega de classe chamada Gracinha numa manifestação política. Ficou estupefato com a mobilização dos estudantes, intelectuais e artistas contra o governo militar. Viu os comícios-relâmpagos de Marcos Medeiros, Vladimir Palmeira e outros. O contato com essas “performances políticas” viria a ter muita influência nos recitais da vida.
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CENA LONGA
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as pedras estão em cima da terra.
capas de disco espalhadas ao acaso.
a última vez que falou ela falou – eu não vou mais
atrás de você.
desde então só soluços. a terceira e a quarta pessoas
pareciam distraídas, amistosas, jogavam dados
viciados.
era quase de manhã. o nono trago turvou a vista de
orlando, aquele que tacapau. daí desfoca forçado.
olívia contrafeita com seu vestido de gaze vem em
quando botava uma azeitona no copo e acompanhava
o lento movimento de imersão. vez em quando pulava
no sofá dragoflex. pulava e fazia caretas sem graça. a
terceira e a quarta pessoa trepavam no último andar
no beliche à direita.
– esse é um bom disco. gosto dele como de você.
– fala sério?!
– não. gosto mais de você.
– cascata
– gosto mais do disco.
– você me dá asco.
orlando acompanha o som com os dedos nos dentes.
o disco pára.
– muda o disco…
ela se levanta e zangada disca algumas voltas no
telefone.
a terra iniciará um novo dia. raios na janela.
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Em 1970, aos dezenove anos, Chacal entra para a ECO, Escola de Comunicação da UFRJ. Queria estudar Economia, pois gostava de história, geografia, sociologia e matemática. Foi mal em matemática no vestibular e acabou entrando na Comunicação. Nessa época, Chacal conhece três figuras fundamentais para sua trajetória: Charles Peixoto, Virgínia Sabino e Guilherme Mandaro. Charles era neto do poeta Ronald de Carvalho e conhecia muita poesia. Virgínia era neta de Benedito Valladares e filha do Fernando Sabino. Logo depois, veio Guilherme. Formou-se um grupo. Iam muito para a casa de Virgínia em Correias, Petrópolis, e para a casa de Charles em Teresópolis. O grupo mergulhou fundo na contemporaneidade musical, na poesia e na filosofia. Algo começava.
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TRIP TROP
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capitaneando a nau capitânea compartilha
compartimento com diva divina corista de revista
orgias a bombordo o litoral aponta farol canhão
lunetas disparates o barco é ferido no nariz e faz
água orlando dá ordem à desordem embarcando
a tripulação no submarino para o casos como esse
no bico do colosso semi afundado orlandes barriga
encolhida farda de gala assovia o hino da esquadra
e pula. o resto da nau eram bolhas. rio maracanã
banheira de d. moema largo do boticário praias
cariocas o dirigível estaciona numa sarjeta sórdida
de niterói pegam a barca pro rio orlando asseclas
partner desviam a cantareira rumo à lagoa rodrigo
dos peixes exilados com falta de ar e área. barcarola
ancorada os tripulantes raptados são atirados aos
tubarões de mandíbulas os reféns pra trabalhar e
a trip tropa trota corte cantagalo acima abaixo na
final visita cordial ao pequeno canto do céu que
ela veio pra se lembrar.
bunda mole e dedo duro tanto treme quanto entrega
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Certo dia, Charles Peixoto apresentou a Chacal um livro que lhe mudaria completamente. Era um pequeno livro, desses de bolso, com poemas do Oswald de Andrade. Chacal já conhecia o poeta através da montagem do Rei da Vela dirigida pelo Zé Celso, mas, após o livro, tudo mudaria. Em 1971, Chacal iniciava uma série de escritos em três pequenos cadernos, com ilustrações. Começava ali sua trajetória. No mesmo ano, os três, Chacal, Charles e Virgínia, mais uns oito companheiro de enveredaram numa viagem pelo rio São Francisco. Mais amanhã. On the road, man!
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ESPERE BABY NÃO DESESPERE
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espere baby não desespere
não me venha com propostas tão fora de propósito
não acene com planos mirabolantes mas tão distantes
espere baby não desespere
vamos tomar mais um e falar sobre os mistérios
da lua vaga
dylan na vitrola dedo nas teclas
canto invento enquanto o vento marasma
espere baby não desespere
temos um quarto uma eletrola uma cartola
vamos puxar um coelho um baralho
e um castelo de cartas
vamos viver o tempo esquecido do mago merlin
vamos montar o espelho partido da vida como ela é
espere baby não desespere
a lagoa há de secar
e nós não ficaremos mais a ver navios
e nós não ficaremos mais a roer o fio da vida
e nós não ficaremos mais a temer a asa negra do fim
espere baby não desespere
porque nesse dia soprará o vento da ventura
porque nesse dia chegará a roda da fortuna
porque nesse dia se ouvirá o canto do amor
e meu dedo não mais ferirá o silêncio da noite
com estampidos perdidos
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No início de 71, Chacal, Charles e Virgínia fizeram uma viagem pelo rio São Francisco, de Pirapora até Petrolina. Muitas descobertas e causos interessantes pelos interiores do Brasil. Depois da viagem, Chacal passou um tempo em Arembepe, na Bahia. Depois de algum tempo enraizado, voltou para o Rio de Janeiro. De volta à rotina da ECO, e através dos estudos sobre Semiótica e Linguística, Chacal descobre a linguagem. Percebeu ali que poderia se comunicar com o mundo, com as pessoas e, sobretudo, se divertir. Pensou em estudar fora do país, porém, resolveu ficar no Brasil e ser poeta, “era mais barato”. Logo depois, Muito Prazer.
E-mails desta pequena coluna em https://cartilhadepoesia.wordpress.com
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BURACOS NO CÉU
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quando tempo e espaço se cortam
quando nosso corpo se encontra
diga que eu perdi a cabeça
diga que eu sou uma bolha de alka seltzer
quando chove meteoro
quando os buracos se cruzam
caem fagulhas na terra
correm agulhas no sangue
desorganizado saio de casa
com um guarda-chuva de cheeseburger
com uma capa de amianto
e não me espanto
entretanto descobri:
a loucura é um sopro no ouvido
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Chacal estava com um bom volume de poemas. Coloriu três cadernos de poemas com caneta pilot. Mostrava aos amigos o resultado, até que mostrou para Waly Salomão, que gostou. Guilherme perguntou se ele não gostaria de publicar em mimeógrafo. Chacal aceitou. Da mesma forma, Charles fez o livro dele, Travessa Bertalha, com a ajuda de Guilherme. Muito prazer saiu com cem cópias mimeografadas cada um.Ali começava a vender sua poesia. Após ter participado de alguns pequenos jornais e revistas alternativas da época, eis que sai uma resenha sobre Muito prazer na coluna de Torquato Neto, Geleia Geral, por Waly Salomão. Um bom começo.
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PRIMA
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não me interessam as últimas notícias
nem as primeiras nem as penúltimas
me importa apenas estar perto de você
já não quero saber que dia a guerra vai estourar
como está o novo espetáculo
quanto foi o último jogo
não.
só me importa a sua presença no meio de tudo
que lhe enfeita de manchetes desinteressantes
você é matéria-prima e una
você cumpre sua trajetória na planeta diário
só para me transtornar
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Chacal foi vivendo a ebulição dos anos 70. Novos Baianos surgindo com tudo, Píer de Ipanema, onde levava Muito prazer, a turma toda das areias, Gal, Waly, Scarlet Moon, Nelson Jacobina, Mautner, Neville, eram as “Dunas do barato”. Foi nessa época, verão de 72, que Chacal, Jards Macalé, Rogério Duarte e Duda compuseram Boneca Semiótica. Preço da passagem, seu segundo livro, foi elaborado nesse mesmo 72, entre uma desagradável experiência na rua Montenegro, em Ipanema, e uma indizível vontade de sair e conhecer o mundo. Fez mil exemplares de Preço da passagem, lançou no MAM na coletiva Ex-Posição. Não vendeu muito. Logo depois participou de um show da Gal dizendo um poema (importante experiência de palco) e com uma salvadora ajuda de seus pais, Chacal embarca para Londres.
Elegia para João Jorge Proença Vargas de Andrade no blog http://pedrolago.blogspot.com
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SONHOS
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sonhos que se desfazem de manhã como se fossem pura bruma
sinais de fumaça de um mundo distante enevoado nebuloso
sonhos que se desfazem de manhã feito bolha bulhufas
sinais que a vida tem campos apenas esboçados farejados
sonhos que se desfazem de manhã como tênue vibração
sinais que nem só na terra existe vida extraterrestre
sonhos que se desfazem de manhã como alga marinha mel
sinais de quimeras como falava quampérius, o zumbi.
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Viagem para Londres. Chacal passa onze meses se enveredando por aquelas bandas de lá. Stones, sementes de girassol, Grand Magic Circus de Jérôme Savary e festival internacional de poesia no Queen’s Elizabeth Hall, onde, Chacal vê ninguém menos que Allen Ginsberg se apresentar. Chacal ficou estupefato com a dicção de Allen, seria uma referência. Depois, Amsterdã, Portugal e muitas experiências que o levaram a escrever América, seu terceiro livro. Chegando ao Brasil, Chacal conhece Cacaso e outros poetas da coleção Frenesi: Ana Cristina Cesar, Chico Alvim, Geraldo Carneiro, Roberto Schwartz e outros. América foi lançado em 75 e já apresentava poemas com mais consistência. Logo mais surgiria, A Nuvem Cigana.
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JABU
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jabuticaba jabuti jaburu jabuco
que é a corruptela de joaquim nabuco
tudo jabuca todos jabam ou jabotam
ainda mais quando estão com vontade
de jabutir ou jaburar
quampérius jogava com jadir na zaga
do jabaquara já vai jaca
zagarreava jabaculejava zarababava
no jaleco do avante vavá
e como era javali talvez jamantão
não dava colher pra nenhum vadio
nenhum valente nenhum valete
nem vascaíno quampa era jabu
jamaicano jamais violento
e sempre jabu porque uma vez jabu
sempre jabu jabu jaburu jaboatão
lalando samba canção…
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Nuvem Cigana veio de uma ideia do poeta Ronaldo Bastos, que pensava criar um grupo de ação artística na cidade. Algo que pudesse juntar tudo ao mesmo tempo: Produzir discos, livros, shows, fazer distribuição. Como a Apple com os Beatles. Ronaldo juntou o pessoal que participava da pelada no Caxinguelê, campo de futebol no Horto onde as pessoas faziam encontros, para tratar de muitas outras coisa além de futebol. Junto com Pedro Cascardo e Dionísio de Oliveira, a Nuvem Cigana havia começado. Chacal também se reunia no Sol Ipanema com outros poetas (depois viria a ser o Posto 9) e de noite no Baixo Leblon, isso já é 76, 77. Muita coisa importante acontecia, encontros, sempre encontros. Nesse período, Chacal foi morar em Santa Tereza, perto da “sede” do Nuvem Cigana. Alguns bons livros foram lançados por Bernardo Vilhena, Ronaldo Santos, Charles Peixoto e outros.
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PINGOS & GOTAS
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a chuva lambe a rua dos pingos dela.
a gota só pinga no banheiro do 403.
os pingos são pisados / atropelados e
é como se não estivessem nem aí.
já a gota grila, me esgota a gota.
e nem se liga
(não sei se repararam que:
a – a gota pinga e o pingo pinga.
b – a tinta pinta e uma pinta pinta
e despinta)
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Em 1975, Rui Campos, convida o Nuvem Cigana para uma feira de artes na galeria da livraria Muro. Seria a Artimanha. A feira (que logo viraria uma festa) teria música, batucada, dança, audiovisual. A poesia não estava encaixando. O que fazer? Ninguém falava poesia em público no Rio de Janeiro. OK. A primeira Artimanha aconteceu com exposição do Vergara com fotos do Cacique de Ramos, o bloco. Estava escuro, Chacal estava inquieto, quando lembrou do Allen Ginsberg e, de súbito, no meio da exibição das fotos, entrou e mandou um poema. Abriram as portas da poesia. Depois disso, todo mundo entrou para falar. Foi ali, por exemplo, que Tavinho Paes se experimentou também. Cinepoema de Flávio Nascimento, Grupo Bela Boca e muitos outros. Foi um importantíssimo evento para tudo que aconteceu depois. Mesmo.
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UM POETA NÃO SE FAZ COM VERSOS
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o poeta se faz do sabor
de se saber poeta
de não ter direito a outro ofício
de se achar de real utilidade pública
no cumprimento de sua missão sobre a terra
escrevendo tocando criando
o que pesa é não se achar louco
patético quixote inútil
como quem fala sozinho
como quem luta sozinho
o que pesa é ter que criar
não a palavra
mas a estrutura onde ela ressoe
não o versinho lindo
mas o jeitinho dele ser lido por você
não o panfleto
mas o jeito de distribuir
quanto a você meu camarada
que à noite verseja pra de dia
cumprir seu dever como água parada
fica aqui uma sugestão:
– se engaveta junto com os seus sonetos
porque muito sangue vai rolar e não
fica bem você manchar tão imaculadas páginas.
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A poesia marginal tinha um nome e corpo e contava com duas importantes figuras para seu amadurecimento: Heloisa Buarque de Hollanda e Cacaso. Chacal estava no meio disso tudo. Em 1976, viaja para São Paulo com Tavinho Paes, Pedro Lage, Xico Chaves e outros poetas para fazer apresentações. A artimanhas e a Nuvem ia crescendo. Em 77, Chacal se forma em Editoração e Teoria da Comunicação. Passou a trabalhar com iluminação de shows até que sai a aguardada antologia de Heloisa Buarque de Hollanda, 26 poetas hoje. Logo depois, Chacal publica seu quarto livro Quampérius. Cria também, ao lado de Luiz Eduardo Resende, o Rola Bola, uma banquinha ambulante de livros que marcava ponto no saguão dos teatros do Rio, deu certo. Momento importante foi o convívio com o Asdrúbal Trouxe o Trombone, com quem, logo mais, criaria a peça Aquele Coisa Toda. Em 79, Chacal publica Olhos vermelhos, Nariz Aniz e Boca Roxa, uma trilogia.
Curta metragem de Victor Steinberg que participei  http://vimeo.com/18830348
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CARA DE CAVEIRA
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minha cara é de caveira
meus olhos são de vidro
e vocês não me dizem nada
no meu corpo tem um sangue
amargo e verde
meu coração é à prova de choque
e vocês não sabem de nada
tenho pés de andar em qualquer chão
as mãos livres sem argolas
e vocês tremem por nada
minha memória guarda coisas bem curtidas
eu sou minha memória bem curtido
e vocês não são de nada
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No fim da década de 70, Chacal sofre um duro golpe: Seu amigo, Guilherme Mandaro, poeta da Nuvem Cigana, se atira pela janela e morre. Houve um abalo geral e, aos poucos, também por outros motivos, a Nuvem foi se dissipando. Chacal tentou trabalhar com publicidade, jornalismo, mas não se encaixava. Letra de música também não. Até que junta tudo e vai para Brasília. Uma nova vida se dava. Se envolveu com o movimento artístico da cidade. No Correio Brasiliense, ajudou a criar o Encarte e trabalhou como cronista. Depois, passa um tempo no sul da Bahia até voltar para o Rio. Fica na casa do Pedro Lage no Largo dos Leões. Volta a frequentar o Parque Lage e conhece uma rapaziada legal que fazia teatro lá com o Hamilton Vaz Pereira e, sobretudo, nas oficinas do Asdrubal. Fausto Fawcett, Cazuza, Bebel Gilberto, Alice Andrade e muitos outros. Tinha também o Perfeito Fortuna que já era uma figura aglutinadora. Como essa gente toda, querendo fazer coisas, havia a necessidade de um espaço. Até que no dia 15 de janeiro de 1982, veio para o mundo o Circo Voador.
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VALHALLA
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está tudo fosforecente
parece um campo de força
uma cápsula lunar
está tudo vago, muito vago
estou nas fronteiras dos campos da paz celestial
não ando.
nado submerso no mar egeu.
sossobro estabanado no mar da tranquilidade
ferido em batalha adentro o valhalla
e desfruto o hidromel das walkyrias
queres? querias.
parece que me transmutei em alguém
esses cabelos não são meus
esse tom de pele, eu desconheço em mim
algo acontece e você não sabe o que é, mr. jones
eu sou o subtítulo de uma obra inacabada
sou o sol de uma sinfonia atonal
passei por um buraco no céu:
a loucura é um sopro no ouvido.
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O início dos anos oitenta foi marcado pela efervescência do Circo Voador. Muita gente boa saiu dali e Chacal estava no meio deles. Entre apresentações da Blitz, Asdrúbal, Manhas & Manias e shows com a Stella Miranda e Duardo Dusek, muita coisa ia acontecendo. Foi um verão incrível. Após a desativação do Circo, Chacal escreve um livro de crônicas chamado Tontas Coisas. Nesse livro havia apenas um poema chamado Cândida. Este poema foi escrito no Prado, em 1981, e é um longo poema de amor. Logo depois Chacal escreve a peça Alguns Anos-luz-além a pedido do Barrão, seu grande amigo que pertencia ao grupo Lua me Dá Colo. Tontas coisas obteve algumas boa críticas até que em 1983, Chacal publica o Drops de Abril. Naquele momento, já se experimentava também com letras de música, algo inconcebível anos antes. Blitz, Lulu Santos, Hanoi Hanoi, 14 Bis e Paralamas.
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CALEIDOSCÓPIO CINEMASCOPE
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a vida é um cristal
que se reflete em pedaços
a vida como ela é
é a coleção dos cacos
vi um filme que aladim
da lâmpada tirava um gênio
ele era james dean
e tinha a cabeça a prêmio
eu parti do irajá
passando por paraty
eu ainda chego lá
até onde quero ir
vi um filme que fellini
fez um ensaio de orquestra
tinha tiro de canhão
e acabava numa festa
se no mato me perdi
nesse mato me acharei
entre mais de mil picadas
numa delas sou o rei
eu vi deus e o diabo
dançando na terra do sol
glauber rocha era o máximo
tão bom quanto rock and roll
minha estrada é um filme
cheio de amor e ódio
pra onde quer que me vire
cinemascope caleidoscópio
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Em 1985 houve o I Festival de Poesia do Circo Voador, organizado por Perfeito Fortuna e Alice Andrade. Foi nesse festival, por exemplo, onde Renato Russo mostrou seu “Faroeste Caboclo” pela primeira fez. Chacal ajuda na organização e participa. Kátia Flávia, conhecido trabalho de Fausto Fawcett com sua banda Robês Efêmeros também surge lá. O Circo armaria sua lona na Lapa. Depois disso, o Circo voou para Guadalajara no meio da Copa do Mundo para uma pequena aventura, Chacal foi junto. O fim dos anos 80 apresenta um certo declínio na sustentação. A competição, o sistema que favorecia somente ao extremo sucesso, um período difícil. Em contrapartida, as performances eram mais constantes e muito se desenvolveu ali. Em 88, Chacal trabalha como roteirista de videoclipe na Rede Globo. Chacal também chegou a escrever o último capítulo da “Armação Ilimitada” como frila e depois para o seriado “Juba e Lula”. Anos 80 é isso aí.
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POP ART
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ande logo seja breve leve love
por art: use abuse e descarte
breve leve now ou never leve love
pop art art pop
é melhor e dá ibope
pop pop pop art
art art art pop
pop art é cultura
aproveite enquanto dura
pop art em toda parte
agora também em marte
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Início dos anos noventa. Chacal, que acabara de sair da Rede Globo e de comprar seu primeiro carro em 36 anos, uma Fusca 67 vermelho, se encontrava novamente em situação difícil. Fazia meditação no Jardim Botânico e natação no Flamengo. Estava meio parado. Então foi convidado para lançar o Quampérius nos jardins da ECO, não falava em público há tempos, mas mesmo assim foi. Até que lhe aparece o Guilherme Zarvos, então, jovem produtor de um evento na Faculdade da Cidade chamado “Terças Poéticas”. Toda terça, havia uma mesa com um poeta de renome como Gullar, Cabral, Gerardo de Mello Mourão, Antonio Houaiss, Antonio Carlos Secchin, com convidados da nova geração, rapaziada mesmo. Chacal fora convidado por Zarvos para falar no mesmo dia da Heloisa Buarque de Hollanda sobre a poesia marginal e no fim de tudo, houve uma apresentação do grupo, então iniciante, Boato. Logo mais, algo surgiria.
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FALA PALAVRA
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fala palavra
tu que és velhíssima
no entanto uma gata
meus afagos
agarrar queria eu teu lombo bom
mas és limo na pedra de imolar amantes
feliz seria se te flagrasse no banho
mas me afogaria na areia movediça
do texto da tua tez
só me resta te cantar
como um cego
que sabe a luz tão próxima
mas impossível
ou como um mudo que sabe
um a um todos os tons
mas incapaz
fala palavra
furta-cor de tudo e todos
apenas passas
                      dás o nome
                                       e vais a caça
                                       bela e fera
                                       pantera
estanca o delírio romântico
nesse coração de poeta
cala em mim a paixão de te cantar
como um louco
que me vale saber tuas sonoridades
                          teu tom de cristal
se no meio desse hospital
                          fico tão impaciente
fala palavra
               fluido flerte
és versátil volúvel volátil
                                 diabólica
fala palavra
                mercúria sombra do nada
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Com o fim do “Terças poéticas” Chacal procura o Zarvos para uma conversa propondo a continuação do evento. Zarvos diz que não gostaria de continuar com a necessidade de chamar sempre um poeta conhecido, julgava difícil agendar, Chacal achava que deveria ser de noite também. Após uma viagem para Berlim, Zarvos, que lá tinha visto um evento parecido, volta com a ideia de fazer algo semelhante, envolvendo poesia e música. Numa conversa entre Chacal, Zarvos e Carlos Emílio, chegam à ideia do CEP 20000. O primeiro foi marcado na última quarta feira de agosto no Espaço Sérgio Porto em 1990. Zarvos, Chacal, Tavinho Paes, Alex Hamburguer, junto com a garotada do Boato, Guilherme Levi e quem aparecesse. O cartaz foi feito pelo André Britto. Chovia muito. Meio vazio, teve fechamento do Boato, que era formado por Celão, Cabelo, Dado Amaral, Beto, Montanha e Justo D’Ávila. Mais ou menos assim teve início o CEP 20000 que duraria 20 anos, ou melhor, está aí há vinte anos. Ainda bem.
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SOBREPOESIA
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a velha pergunta se instala
na sala do meu dia a dia:
pra que serve poesia?
pra decorar cerimônia
pra debelar a insônia
para dar nume ao nome
ou para cantar meu amor
operísticamente?
novas respostas se agitam
em busca de uma saída:
a poesia é precisa
pelo sim e pelo não
pelo que do não é til
pelo que ainda é talvez
pela energia sutil
a poesia é assim.
de novo o problema aparece
e uma ruga se materializa:
como viver de poesia?
de fazer reclame anúncio
de letrar o que é melodia
de ficcionar o que é pedra
ou posando de poeta
oportunista lente?
enfim a solução transparece
em súbita luz muito viva:
a poesia se vive
sem meias medidas
no transitivo direto
sem tênis adidas
no infinitivo descalço
a poesia é o fim.
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Logo após a criação do CEP, Chacal, começa a dar oficinas no Galpão das Artes do MAM. O museu passava por um momento difícil com a crise econômica do governo Collor, então, artistas foram convidados para dar oficinas. Antonio Cícero, Regina Miranda, Paulo Fortes e Chacal, que, inclusive, chegou a editar o Jornal do MAM. Com novo gás, Chacal entra com tudo no CEP. Lá se vão vinte anos e muitos passaram por lá: Marcia X, Pedro Luiz e a Parede, Arthur Omar, Chelpa Ferro, Hapax, Michel Melamed e dezenas de outros. Depois de um tempo, havia o CEP do Chacal e o CEP do Zarvos, todos frequentavam todos e com isso, todos ganhavam. O CEP reunia a rapaziada do Posto 9, do Baixo Gávea, do Baixo Leblon e muita gente que ouvia falar nesse lugar onde tudo acontecia. Liberdade sempre. O CEP virou a tese de doutorado do Zarvos e referência para os novos, inclusive este que vos escreve. Nestes mesmos anos 90, Chacal passa a morar no Baixo Gávea, que era frequentado por jovens interessados em artes, o CEP era divulgado lá, obviamente. Outro ponto de encontro era a casa do Zarvos. Por aí vai.
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LÚCIFER
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– Lúcifer! lúcifer! retornai de onde vos exilastes
diante da hipocrisia dos homens, vinde lá das
entranhas das trevas nos dar tua luz, encarnada luz,
único farol possível no meio desassossego. lúcifer!
lúcifer! lúcifer!
Acordo no meio da noite com o nome do príncipe
das trevas ecoando. vejo uma luz que vem como
uma golfada vermelha de dentro do tenebrião para
dar direção a minhas imagens pânicas. perdido no
lusco-fusco, essa íntima aurora boreal clareia meus
passos nesse labirinto. em toda baía, meu barco baila
bêbado e a grande lua com seus reflexos prismáticos
me desorienta dezoito pressentimentos. fujo de um,
atravessando o charco em desespero para naufragar
em outro, sibila tenebrosa, movediço pântano que me
quer devorar com suas garras crustáceas. aí de dentro
de mim, do fundo da noite eterna, um único grito
brota

– Lúcifer!

Então uma onda de fogo e luz me aquece e ilumina e o
louco lago se rasga. do seu leito seco, nasce um olho
aceso que sabe onde pisar. sim, senhor das trevas,
agora acredito na força das imagens primordiais. sim,
pastor da noite, tenho fé nas vozes que emergem das
minhas vísceras. sim, mestre ctônico, agora olho as
serpentes, os cães, os gatos, com olhar numinoso
de quem vê os encaminhadores. e todos rendem
homenagem à luz que vem de onde não se vê, ao calor
que brota das águas geladas, e todos tecem loas ao
lendário andarilho vagabundo que crepita em toda
lenha e repercute carnaval
– Lúcifer, sebgor dos caminhos! iluminai nossas
veredas. desencadeai a ígnea tempestade para que o
mais humano entre os deuses, o mais santo entre os
mortais, possa de novo caminhar à luz do dia, com
seus chifres, cetro e rabo. lúcifer! lúcifer! imperai!
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Em 2001 surge o FalaPalavra. Grupo performático formado Chacal, Pedro Rocha, Ericson Pires, Viviane Mosé, Guilherme Levi, Paulista, Michel Melamed e Éber Inácio. Foram algumas apresentações no Planetário da Gávea e no próprio Sérgio Porto. O FalaPalavra é o maior exemplo de desmembramentos do CEP, que também se deu em outros grupos. Nos 10 anos do CEP houve uma grande homenagem na Revista Trip, com um cd e grande máteria. Nesse meio, Chacal organiza o Humaitá Pra Peixe, com música e poesia. Quando o Sérgio Porto fecha para obras, Chacal ajuda a criar um bloco de carnaval. A ideia foi crescendo, até que surge o Bangalafumenga, com Pedro Luís e outros. Os shows eram no Planetário e deram certo. O carnaval de rua do Rio voltava a ser o que era.
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TEMPO
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no início era o começo
o depois veio vindo devagar.
o antes veio depois do depois.
só antes quando esse se estabeleceu.
no princípio era o agora.
isso demorou até que
tudo virou antes e depois.
então numa revolução peluda
o agora voltou ao trono.
antes e depois viraram
falta do que fazer.
e tanto fizeram
que o agora virou tudo
e o tudo, nada.
de volta ao princípio
o agora agora congelou.
o antes fica ora depois.
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Profunda errata: Ontem esqueci do Guilherme Zarvos no coro do FalaPalavra, que acontecia em 2000. Depois, houve um lapso de tempo com relação ao Humaitá Pra Peixe que ocorreu em 1992. Fora isso, em 2000, houve o Miscelânea Odeon, evento que começava nas portas do cinema e terminava lá dentro com muita festa. Chacal organizou quatro. Já há muito tempo, Chacal, se tornara referência para eventos de poesia envolvendo outras linguagens. Chacal já era cinquentenário. Chacal também participou da organização do Freezone, evento multiartes patrocinado pela Souza Cruz que acontecia em várias cidades. Grande proporções. Chacal já estava há oito anos sem publicar, até que surgiu a vontade fazer “A vida é curta para ser pequena”, que além de um belo livro, virou uma peça dirigida pela Cristina Flores. Chacal em cena.
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PALAVRA CORPO
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a palavra vive no papel
com vírgulas hífens crases reticências
leva uma vida reclusa de carmelita descalça
corpo palavra
o corpo aprendeu a ler na rua
com manchetes de jornais
jogadas na cara pelo vento
com gírias palavrões
zoando no ouvido
com gritos sussurros
impressos na pele
palavra corpo
a palavra que sair de si
a palavra quer cair no mundo
a palavra quer soar por aí
a palavra que ir mais fundo
a palavra funda
a palavra quer
a palavra fala:
– eu quero um corpo!
corpo palavra
o corpo sabe letras com gosto
de carne osso unha e gente
o corpo lê nas entrelinhas
o corpo conhece os sinais
o corpo não mente
o corpo quer dizer o que sabe
o corpo sabe
o corpo quer
o corpo diz:
– fala palavra!!!
palavracorpo corpopalavra
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Em 2003 a RioArte foi fechada pela Prefeitura. Algumas companhias de dança e de teatro ficaram sem apoio e houve uma grande revolta. Gilberto Gil assume o Ministério da Cultura e a Lei Rouanet é posta em questão. Chacal luta pelo 1% no orçamento para a Cultura. De um lado havia o grande teatro e do outro os grupos experimentais. No Largo do Machado, houve um grande manifesto com a participação de alguns grupos teatrais e de dança, Chacal, junto com Fábio Ferreira, redigiu o Manifesto 1. Em 2006, Chacal, após aprender os caminhos da produção cultural, cria o Bendita Palavra Maldita, no SESC. Performances com poesia e artes plásticas envolvendo gerações diferentes. Nessa época, Chacal começa a receber convites para se apresentar em outros países, Argentina e depois Estados Unidos. Em Nova York, Chacal faz uma performance no Bowery Club, porém, uma triste notícia do Brasil: O Sérgio Porto pega fogo.
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ESSE ANIMAL
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o poeta é de carne e osso
tem olhos, boca, nariz, pescoço
tem pressa, humor, desejo e calma
o poeta é de corpo e alma
o poeta é de osso e carne
sendo a vida vivda o osso
a carne o que lhe dá a palavra
o poeta é alguém que se lavra
tem poeta mais carne que osso
tem o tecido adiposo de quem
entre livros letras ditados
vê a vida passar ao largo
tem poeta carne de pescoço
traz o esqueleto no rosto
não sabe dar carne ao poema
preso no fundo do poço
o poeta é um animal que fuma
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Belvedere é o livro que contém toda a sua poesia reunida. Também é o nome de um mirante na subida da Serra. O livro tem treze livros em 35 anos de estrada. Saiu em 2007, numa bela edição. O lançamento foi na FLIP do mesmo ano. Por essa época, Chacal faz algumas viagens para São Paulo, com recitais e encenações de seus poemas na Praça Roosevelt pelo grupo Os Satyros. Houve também o CEP 20000 na mesma praça e Chacal percorre o Circuito SESC das Artes. Em 2010, Chacal publica Uma História à Margem, autobiografia que é, para mim, um documento de extrema importância para todos os jovens poetas do Rio de Janeiro, ou para os que queiram entender como a coisa toda funcionou e funciona por aqui. O CEP se renovou e hoje volta a ser procurado, volta a ser um ponto de encontro, como sempre foi e Chacal, um dos seus grande responsáveis.
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DOIS PONTO TRES LISBOA
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tô sem ideia. sem vontade descrever. de nada. não
tenho a mínima ideia do que virá a seguir. inércia é
meu sobrenome. ando tão feio. tão sem assunto. me
assusto. ninguém mais há em minha volta. tô cansado
da minha companhia. só falo besteira. não digo nada
com nada. preciso exercitar a pena. se ela se move que
seja na minha mão. trêmula e bolorenta. mesmo que
seja para ser mais um papel sujo. se isso fosse uma folha
em branco, você podia desenhar, descansar a vista. ou
escrever um bilhete suicida. mas eu passei primeiro
e… se você não se importa, rabisque por cima. por mim
tanto faz. acho até que vou tomar um bagaço e ver
no que dá. vou à torre de Belém olhar o Tejo. matar o
tempo pra não me matar, esse é o meu nome. fiquei nos
quartos dessa casa em Benfica o dia todo, ouvindo rock
lendo história em quadrinho. boa noite. talvez alguém
leia e curta isso aqui. tanto faz. embora tudo que mais
quero nessa porca vida é te botar feliz. bagaço nasta o
meu e o da uva.
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Eis que chegamos ao final de mais uma antologia. Desta vez, percorremos a poesia do poeta Ricardo de Carvalho Duarte, o Chacal. Poeta nervo do tempo da geração da marginal, do dizer poesia, do diálogo com a nova geração, dos eventos de poesia, quem começou tudo isso que nós vemos e vivemos hoje no cenário poético do Rio de Janeiro. Da Nuvem Cigana, Artmanhas, Circo Voador, ao CEP 20000 e o FalaPalavra. Lembrando Manuel Bandeira, o sexagenário Chacal, (dia 24 de maio fará 60 anos) é, de fato, umas das figuras mais notáveis da poesia brasileira, com especial devoção ao Rio de Janeiro, cidade onde cresceu e desenvolveu sua voz, seu grito. Semana que vem entraremos numa outra questão, numa outra proposição poética, em outros poemas, outra trajetória, só para lembrar que a poesia pode mudar tudo de uma hora para outra, e o poema é uma das chaves para isso. Evoé!
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SOBRE O SILENCIO
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hoje não viemos discutir projetos
hoje não viemos pedir
hoje viemos como alguém que visita sua casa
que vem dizer pra família
sobre as dificuldades de se tecer a invenção
sobre o abismo que se abre para além do entretenimento
sobre o prazer que é lutar pelo que se acredita
hoje viemos dizer pra família
que não vamos mais terminar os estudos
e que nossa carne curtida, nosso olho vermelho,
nosso sorriso encarnado e, principalmente, nosso silêncio
dizem tudo.

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José Saramago

José de Sousa Saramago nasceu em Azinhaga, vilarejo do conselho de Golegã, que fica localizada na antiga província de Ribatejo em Portugal no dia 16 de novembro de 1922. Cresceu “numa família de camponeses em terra” como uma vez escreveu. Neste mês, percorreremos a poesia, pouca conhecida, deste grande e laureado escritor da língua portuguesa cuja prosa todos conhecemos. Com muita honra que determino: Agora é Saramago!

ÁGUA AZUL

Altos segredos escondem dentro de água
O reverso da carne, corpo ainda.
Como um punho fechado ou um bastão,
Abro o líquido azul, a espuma branca,
E por fundos de areia e madrepérola,
Desço o véu sobre os olhos assombrados.

(Na medida do gesto, a largueza do mar
E a concha do suspiro que se enrola.)

Vem a onda de longe, e foi um espasmo,
Vem o salto na pedra, outro grito:
Depois a água azul desvenda as milhas,
Enquanto um longo, e longo, e branco peixe
Desce ao fundo do mar onde nascem as ilhas.

 

 

Foi “numa família de camponeses sem terra” que Saramago nasceu. Consta que o nome ‘Saramago’ vem de uma planta espontânea que servia de alimento aos pobres. Em 1924, aos dois anos de idade, a família se muda para Lisboa. O pai resolvera abandonar o trabalho no campo para exercer a profissão de policial na capital. Meses depois da mudança, seu irmão, Francisco, de quatro anos de idade, faleceria. As condições eram precárias, a família viveu em vários lugares, sempre em quartos alugados na ruas de Lisboa.

TEU CORPO DE TERRA E ÁGUA

Teu corpo de terra e água
Onde a quilha do meu barco
Onde a relha do arado
Abrem rotas e caminho.

Teu ventre de seivas brancas
Tuas rosas paralelas
Tuas colunas teu centro
Teu fogo de verde pinho

Tua boca verdadeira
Teu destino minha alma
Tua balança de prata
Teus olhos de mel e vinho

Bem que o mundo não seria
Se o nosso amor lhe faltasse
Mas as manhãs que não temos
São nossos lençóis de linho

José Saramago fez a instrução básica nas escolas primarias da Rua Martens Ferrão e do Largo do Leão, em Lisboa. A família o havia matriculado numa escola chamada Liceu Gil Vicente, onde fez boa parte do colegial, divido na época em Portugal, em liceu e técnico. Porém, por dificuldades econômicas, foi obrigado a transferir-se para a Escola Industrial de Afonso Domingues, onde estudou, durante cinco anos, o ofício de serralheiro mecânico.

PASSO NUM GESTO QUE EU SEI

Passo num gesto que eu sei
Deste mundo agoniado para o espaço
Onde sou quanto serei
No tempo que sobra escasso

No outro mundo sou rei
E o meu rosto de cristal e puro aço
É o espelho que forjei
Com suor pena e cansaço

E se o mundo que deixei
Tem as marcas desenhadas do meu passo
São baralhas que enredei
São teias e vidro baço

Tantas provas cá terei
Tantas vezes do pescoço solto o laço
Se me sagraram em rei
Aceitem a lei que eu faço

Vem a ser que o homem novo
Está na verdade que movo

 

À noite, o jovem Saramago frequentava a biblioteca municipal do Palácio das Galveias, como ele próprio diria “lendo ao acaso de encontros e de catálogos, sem orientação, sem ninguém que me aconselhasse, como o mesmo assombro criador do navegante que vai inventando cada lugar que descobre”. Foi assim, “guiado pela curiosidade e pela vontade de aprender” que desenvolveu o gosto pela leitura e o gosto especial por Kafka, Gogol, Cervantes, Montaigne, Raul Brandão e Padre Antônio Vieira.

DISSERAM QUE HAVIA SOL

Disseram que havia sol
Que todo o céu descobria
Que nas ramagens pousavam
Os cantos das aves loucas

Disseram que havia risos
Que as rosas se desdobravam
Que no silêncio dos campos
Se davam corpos e bocas

Mais disseram que era tarde
Que a tarde já descaía
Que ao amor não lhe bastavam
Estas nossas vidas poucas

E disseram que ao acento
De tão geral harmonia
Faltava a simples canção
Das nossas gargantas roucas

Ó meu amor estas vozes
São os avisos do tempo

 

 

Avançando na vida do jovem José Saramago, em 1944, aos 22 anos, casa-se com a pintora Ilda Reis. Neste momento, já havia mudado sua atividade, do emprego de serralheiro mecânico, agora, trabalharia como empregado administrativo, primeiro nos Hospitais Civis de Lisboa, depois, na Caixa de Abono da Família do Pessoal de Industria e Cerâmica, de onde foi afastado, mais tarde, em 1947, por razões políticas, quando apoiou o candidato da oposição General Norton de Matos, nas eleições da presidência da República.

DE PAZ E DE GUERRA

Na mão serena que num gesto de onda
Em estátua musical o ar modela.

Na mão torcida que num frio de gelo
A parede do tempo em fundos gritos risca.

Na mão de febre que num suor de chama
Em cinzas vai tornando quanto toca.

Na mão de seda que num afago de asa
Faz abrir os sonhos como fontes de água.

Na tua mão de paz, na tua mão de guerra,
Se já nasceu amor, faz ninho a mágoa.

 

 

Em 1947, nasce sua primeira e única filha, Violante, é também o ano da publicação de seu primeiro livro, Terra do Pecado, intitulado inicialmente, A Viúva. Graças à intervenção de seu antigo professor Jorge O’Neil, começou a trabalhar na Caixa de Previdência do Pessoal da Companhia de Previdente, fazendo cálculo de subsídios e de pensões. Nessa época, já escrevia poemas e contos, alguns deles publicados em algumas revistas e jornais. Outro romance, literário, viria.

RETRATO DO POETA QUANDO JOVEM

Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brandas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.

 

 

Em 1953, Saramago concluía o romance, até hoje inédito, Clarabóia, que seu amigo, o pintor Figueiredo Sobral, enviou para Empresa Nacional de Publicidade e de que esta só deu notícia em 1990 (!). Sobre este caso, Saramago disse que “sempre tive a consciência que não se perdeu grande coisa em não ter sido publicado”. Depois disso, consta que Saramago passaria dezenove anos sem escrever nada, quase duas décadas de silêncio, “achava que não tinha nada pra dizer”, dizia.


EM VIOLINO FADO


Ponho as mãos no teu corpo musical
Onde esperam os sons adormecidos.
Em silêncio começo, que pressente
A brusca irrupção do tom real.
E quando a alma ascendendo canta
Ao percorrer a escala dos sentidos,
Não mente a alma nem o corpo mente.
Não é por culpa nossa se a garganta
Enrouquece e se cala de repente
Em cruas dissonâncias, em rangidos
Exasperantes de acorde errado.


Se no silêncio em que a canção esmorece
Outro tom se insinua, recordado,
Não tarda que se extinga, emudece:
Não se consente em violino fado.

 

 

Saramago começou a trabalhar na editora Estúdios Cor, como responsável pela produção, o que lhe permitiu conhecer e fazer amizades com os principais escritores portugueses daquele momento. Nesta época, 1955, para melhorar os rendimentos da família, e também por gosto pessoal, Saramago inicia um trabalho de tradução literária. A partir daí, se envolve com Collete, Par Lagerkvist, Jean Cassou, Maupassant, André Bonnard, Tolstoi, Baudelaire, Étienne Balibar, Nicos Poulantzas, Henri Focillon, Jacques Roumain, Hegel e Raymond Bayer. Por aí vai.

TAXIDERMA OU POÉTICAMENTE HIPÓCRITA
Posso falar de morte enquanto vivo?
Posso ganir de fome imaginada?
Posso lutar nos versos escondido?
Posso fingir de tudo, sendo nada?
Posso tirar verdades de mentiras,
Ou inundar de fontes um deserto?
Posso mudar de cordas e de liras,
E fazer de má noite sol aberto?
Se tudo a vãs palavras se reduz
E com elas me tapo a retirada,
Do poleiro da sombra nego a luz
Como a canção se nega embalsamada.
Olhos de vidro e asas prisioneiras,
Fiquei-me pelo gasto de palavras
Como rasto das coisas verdadeiras.

Em 1966, Saramago publicou seu primeiro livro de poesia, Os Poemas Possíveis, cujos poemas percorremos nessa semana. Paralelamente, entre maio de 67 e novembro de 68, colaborou como crítico literário na revista Seara Nova, analisando vinte e três livros de ficção, dentre os quais, Jorge de Sena, Agustina Bessa Luís, Alice Sampaio, Augusto Abelaira, Urbano Tavares Rodrigues, José Cardoso Pires, Rentes Carvalho, Nelson de Matos e Manuel Campos Pereira. Saramago definiu Agustina como “genial”. Publicou crônicas no jornal A Capital, que depois seriam reunidas no livro Deste Mundo e de Outro.

MITOLOGIA

Os deuses, noutros tempos, eram nossos
Porque entre nós amavam. Afrodite
Ao pastor se entregava sob os ramos
Que os ciúmes de Hefesto iludiam.

Da plumagem do cisne as mãos de Leda,
O seu peito mortal, o seu regaço,
A semente de Zeus, dóceis, colhiam.

Entre o céu e a terra, presidindo

Aos amores de humanos e divinos,

O sorriso de Apolo refulgia.

Quando castos os deuses se tornaram,

O grande Pã morreu, e órfãos dele,

Os homens não souberam e pecaram.

 

 

Em 1970, José Saramago se divorcia de Ilda Reis e inicia, logo após, uma relação que duraria dezesseis anos com a escritora Isabel da Nóbrega. No mesmo ano publica seu segundo livro de poemas Provavelmente Alegria. Saramago sai da editora Estúdios Cor, onde trabalhava, e foi ser editorialista e coordenador de um suplemento cultural do Diário de Lisboa. Colaborava também com o Jornal do Fundão.

OUVINDO BEETHOVEN

Venham leis e homens de balanças,
Mandamentos daquém e dalém mundo,
Venham ordens, decretos e vinganças,
Desça o juiz em nós até ao fundo.

Nos cruzamentos todos da cidade,
Brilhe, vermelha, a luz inquisidora,
Risquem no chão os dentes da vaidade
E mandem que os lavemos a vassoura.

A quantas mãos existam, peçam dedos,
Para sujar nas fichas dos arquivos,
Não respeitem mistérios nem segredos,
Que é natural nos homens serem esquivos.

Ponham livros de ponto em toda a parte,
Relógios a marcar a hora exacta,
Não aceitem nem votem outra arte
Que a prosa de registo, o verso data.

Mas quando nos julgarem bem seguros,
Cercados de bastões e fortalezas,
Hão-de cair em estrondo os altos muros
E chegará o dia das surpresas.

 

Em 1973, José Saramago publica O Embargo e o segundo livro de crônicas jornalísticas e publicadas no Jornal do Fundão e em A Capital com o título de A Bagagem do Viajante. Em abril de 1974 vem a Revolução dos Cravos e, Saramago, que já dirigia o suplemento literário do Diário de Lisboa e colaborava com a revista Arquitectura, torna-se uma espécie de “operário das palavras”, é nomeado diretor-adjunto do Diário de Notícias durante o período de governo chefiados pelo General Vasco Gonçalves. Saramago já havia coordenado uma equipe do Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis, dependente do Ministério da Educação. Editou também seu primeiro livro de crônicas políticas: As Opiniões que DL teve.

texto Lá vem Juvenal! no http://equivocos-pedrolago.blogspot.com
AOS DEUSES SEM FIÉIS

Talvez a hora escura, a chuva lenta,
Ou esta solidão inconformada.

Talvez porque a vontade se recolha
Neste findar de tarde sem remédio.

Finjo no chão as marcas dos joelhos
E desenho o meu vulto em penitente.

Aos deuses sem fiéis invoco e rezo,
E pergunto a que venho e o que sou.

Ouvem-me calados os deuses e prudentes,
Sem um gesto de paz ou de recusa.

Entre as mãos vagarosas vão passando
A joeira do tempo irrecusável.

Um sorriso, por fim, passa furtivo
Nos seus rostos de fumo e de poeira.

Entre os lábios ressecos brilham dentes
De rilhar carne humana desgastados.

Nada mais que o sorriso retribui
O corpo ajoelhado em que não estou.

Anoitece de todo, os deuses mordem,
Com seus dentes de névoa e de bolor,
A resposta que aos lábios não chegou.

 

 

O verão quente de 75 foi turbulento, os tempos estavam confusos e Portugal, como muitos diziam, beirava uma guerra civil. No Diário de Notícias, onde Saramago trabalhava, consta que sentia-se o clima braço de ferro entre os tidos como “radicais” envolvidos no processo revolucionário de acordo com a linha política do Partido Comunista Português (PCP) do qual Saramago fazia parte desde 66, e com os mais “moderados”. A linha editorial do jornal foi posta em causa por trinta jornalistas que defendiam a revisão, ou seja, uma espécie de censura, através de uma abaixo-assinado, e exigiam a publicação do mesmo no próprio jornal.

POEMA A BOCA FECHADA

Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é doutra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vasa de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais boiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quanto me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.

 

 

 

O processo de censura dentro do Diário de Notícias apareceu logo no dia seguinte no jornal Expresso, assim como na BBC. No jornal, para qualquer tipo de decisão era preciso convocar o Conselho Nacional de Trabalhadores, onde, em certa noite, fora decidido que 24 jornalistas seriam afastados após uma intervenção eloquente de Saramago. Porém, no governo seguinte, Saramago, que fora alvo de uma espécie de “saneamento”, foi definitivamente afastado do cargo e o jornal suspenso sem qualquer apoio do Partido Comunista.

ESTUDO DE NU

Essa linha que nasce nos teus ombros,
Que se prolonga em braço, depois mão,
Esses círculos tangentes, geminados,
Cujo centro em cones se resolve,
Agudamente erguidos para os lábios
Que dos teus se desprenderam, ansiosos.

Essas duas parábolas que te apertam.
No quebrar onduloso da cintura,
As calipígias ciclóides sobrepostas
Ao risco das colunas invertidas:
Tépidas coxas de linhas envolventes,
Contornada espiral que não se extingue.

Essa curva quase nada que desenha
No teu ventre um arco repousado,
Esse triângulo de treva cintilante,
Caminho e selo da porta do teu corpo,
Onde o estudo de nu que vou fazendo
Se transforma no quadro terminado.

 

 

Mais uma vez desempregado e com as portas completamente fechadas para qualquer possibilidade de emprego no contexto político, José Saramago dedica-se por completo à escrita e à tradução, vertendo para o português cerca de vinte e sete obras, quase todas de caráter político. Ganhava pouco dinheiro, porém, não desistia do ofício. Fez parte do Movimento Unitário dos Trabalhadores Intelectuais para a Defesa da Revolução (MUTI) e publicou até o final de 1976 o livro O Ano de 1993, Apontamentos, que se tratava de uma reunião de crônicas do Diário de Notícias e também publicou o romance Manual de Pintura de Caligrafia.

Graças ao incentivo de Tavinho Paes, arquivo deste mailing para pesquisa em https://cartilhadepoesia.wordpress.com
EXERCÍCIO MILITAR

És campo de batalha, ou simples mapa?
És combate geral, ou de guerrilhas?
Na cortina de fumo que te tapa,
É paz que vem, ou novas armadilhas?

Fechado neste posto de comando,
Avanço as minhas tropas ao acaso
E tão depressa forço como abrando:
Capitão sem poder, soldado raso.

A lutar com fantasmas e desejos,
Nem sequer sinto as balas disparadas,
E disponho as bandeiras dos meus beijos
Em vez de abrir crateras a dentadas.

 

A infância marcada pelas dificuldades financeiras seria, mais tarde, lembrada num momento de glória do escritor e, aqui, poeta. Terminado o curso, conseguiu seu primeiro emprego como serralheiro mecânico nas oficinas dos Hospitais Civis de Lisboa. Desde cedo, adquiriu o hábito de ser pontual, rígido no cumprimento do dever e na dedicação ao trabalho. Consta que não tinha ambições na vida, que sabia que teria de viver cada dia com o árduo trabalho, e o que tivesse que chegar, chegaria com o tempo.

Experiência numa Biblioteca Municipal em http://equivocos-pedrolago.blogspot.com
NO TEU OMBRO POUSADA A MINHA MÃO
Eu luminoso não sou. Nem sei que haja
Um poço mais remoto, e habitado
De cegas criaturas, de histórias e assombros.
Se no fundo do poço, que é o mundo
Secreto e intratável das águas interiores,
Uma roda de céu ondulando se alarga,
Digamos que é o mar: como o rápido canto
Ou apenas o eco, desenha no vazio irrespirável
O movimento de asas. O musgo é um silêncio,
E as cobras-d’água dobram rugas no céu,
Enquanto, devagar, as aves se recolhem.

No início de 1976, Saramago vai morar no Alentejo, mais precisamente na povoação rural de Lavre, onde colheu importantes informações que seriam fundamentais para a escrita de seu aclamado romance e primeiro grande sucesso, Levantado do Chão, com o qual recebeu o Prêmio da Cidade de Lisboa. Dois anos antes, havia publicado a peça de teatro A Noite e recebeu o Prêmio da Associação Portuguesa de Escritores, e o conto O Ouvido, que integrou a antologia Poética dos Cinco Sentidos. Saramago iniciava o amadurecimento de sua linguagem.

tradução de Victor Hugo em http://pedrolago.blogspot.com
RECORTO A MINHA SOMBRA DA PAREDE

Recorto a minha sombra da parede,
Dou-lhe corda, calor e movimento,
Duas demãos de cor e sofrimento,
Quanto baste de fome, o som, a sede.

Fico de parte a vê-la repetir
Os gestos e palavras que me são,
Figura desdobrada e confusão
De verdade vestida de mentir.

Sobre a vida dos outros se projecta
Este jogo das duas dimensões
Em que nada se prova com razões
Tal um arco puxado sem a seta.

Outra vida virá que me absolva
Da meia humanidade que perdura
Nesta sombra privada de espessura,
Na espessura sem forma que a resolva.

Na década de 80 veio a consagração internacional. Continuou traduzindo vários títulos, publicou a peça de teatro O que vou fazer com este livro?; publicou Viagem a Portugal; e Memorial do Convento, já em 1982, com o qual ganhou o prêmio Prêmio Pen Club e Prêmio Literário do Município de Lisboa. Depois, O Ano da Morte de Ricardo Reis, com o qual ganhou de novo o Pen Club, o Prêmio da Crítica 1985, pela Associação Portuguesa de Críticos, o Prêmio Dom Dinis (Fundação Casa de Mateus) e o Prêmio Grinzane-Cavour (Alba, Itália) 1987. No ano seguinte terminou seu relacionamento com a escritora Isabel de Nóbrega. Publicou ainda A Jangada de Pedra e A Segunda Vida de São Francisco de Assis. Um novo amor apareceria.
VENHO DE LONGE, LONGE, E CANTO SURDAMENTE

Venho de longe, longe, e canto surdamente
Esta velha, tão velha, canção de rimas tortas,
E dizes que a cantei a outra gente,
Que outras mãos me abriram outras portas:

Mas, amor, eu venho neste passo
E grito, da lonjura das estradas,
Da poeira mordida e do tremor
Das carnes maltratadas,
Esta nova canção com que renasço.

 

 

Por conta do livro O Ano da Morte de Ricardo Reis, a jornalista e tradutora espanhola Pilar de Rio vai para Lisboa conhecer Saramago, acabam se apaixonando e casam-se em 1988. Sobre ela escreveu: “Se tivesse morrido aos 63, antes de a conhecer, morreria muito mais velho do que quando serei quando chegar minha hora”. Em 1989, publica História do Cerco de Lisboa. Também pertenceu à primeira Direção da Associação Portuguesa de Escritores, e de 1985 a 1994, foi presidente da Assembléia Geral da Sociedade Portuguesa de Autores, e ainda ficaria por um ano na presidência da Assembléia Municipal de Lisboa ao mesmo tempo da histórica coligação entre socialistas e comunistas que tinha como presidente da Câmara Jorge Sampaio. Amanhã, anos 90.

CARTA DE JOSÉ A JOSÉ

Eu te digo, José: por esta carta
Não garanto mentira nem verdade:
O que de mim não sei sempre me aparta
Da franqueza de ser e da vontade.

São cobiças inúteis, vãos desgostos,
São braços levantados e caídos,
São rugas que cortam os cem rostos
Da comédia e do jogo repetidos.

Desse lado da mesa, ou desse espelho,
Vais seguindo as palavras invertidas:
Assim verás melhor se, quanto, valho
Ao revés dos sinais e das medidas.

(Correm águas geladas no meu rio.
E roucos cantos de aves, derivando
Por silêncio frustrado e calafrio,
Vão manhã doutro dia recordando.)

Cai a chuva do céu, e não te molha,
Está a noite entre nós, e não te cega.
Não sorrias, José: à tua escolha
O que nos sobra de alma se me nega.

Desse lado da mesa, onde me acusas.
Te levantas. A marca do teu pé,
Na soleira da porta que recusas,
Fecha de vez a carta inacabada.

Tua sombra pisada, teu amigo — José.

 

 

Na década de 90, Saramago vai para o exílio em virtude do vergonhoso ato de censura do governo português chefiado por Cavaco Silva (!), pela mão do então subsecretário do Estado, Sousa Lara, que vetou a indicação de seu conhecido romance O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de 1991, ao Prêmio Literário Europeu, alegando ser “ofensivo aos católicos”. Saramago então vai viver com Pilar na ilha de Lanzarote na Espanha. Lá construiu uma casa onde gravou em azulejos num muro branco o nome “A Casa”, “resolvi baptizá-la assim, se calhar pela minha necessidade de espetar uma pequena bandeira portuguesa. Foi a afirmação da minha origem”.

A TI REGRESSO, MAR, AO GOSTO FORTE

A ti regresso, mar, ao gosto forte
Do sal que o vento traz à minha boca,
À tua claridade, a esta sorte
Que me foi dada de esquecer a morte
Sabendo embora como a vida é pouca.

A ti regresso, mar, corpo deitado,
Ao teu poder de paz e tempestade,
Ao teu clamor de deus acorrentado,
De terra feminina rodeado,
Prisioneiro da própria liberdade.

A ti regresso, mar, como quem sabe
Dessa tua lição tirar proveito.
E antes que esta vida se me acabe,
De toda a água que na terra cabe
Em vontade tornada, armado o peito.

 

 

O Evangelho Segundo Jesus Cristo recebeu o Grande Prêmio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, assim como vários e importantes prêmios, inclusive na Italia. Foi Doutor Honoris Causa pela Universidade de Turim e Sevilha e recebeu o título de Cavaleiro da Ordem das Artes e Letras na França. Em 1993 publicou outra peça de teatro, In Nomine Dei, e iniciou a escrita de um diário, Cadernos de Lanzarote. Saramago se tornou membro do Parlamento Internacional de Escritores em Estrasburgo. Os prêmios viriam mais e mais junto com o prestígio internacional, porém, o grau máximo viria alguns anos depois. Mediante a riqueza de sua biografia e a quantidade de poemas, estenderei o estudo por mais uma semana.

JOGO DO LENÇO

Trago no bolso do peito
Um lenço de seda fina,
Dobrado de certo jeito.
Não sei quem tanto lhe ensina
Que quanto faz é bem feito.

Acena nas despedidas,
Quando a voz já lá não chega
Por distâncias desmedidas.
Depois, no bolso aconchega
As saudades permitidas.

Também o suor salgado,
Às vezes, enxugo a medo,
Que o lenço é mal empregado.
E quando me feri um dedo,
Com ele o trouxe ligado.

Nunca mais chegava ao fim
Se as graças todas dissesse
Deste meu lenço e de mim,
Mas uma coisa acontece
De que não sei porque sim:

Quando os meus olhos molhados
Pedem auxílio do lenço,
São pedidos escusados.
E é bem por isso que penso
Que os meus olhos, se molhados,
Só se enxugam no teu lenço.

 

 

Em 1995, José Saramago publica seu famoso Ensaio sobre a Cegueira, e o segundo livro de Cadernos de Lanzarote. No mesmo ano ganho o Prêmio Camões, o mais importante prêmio português, e o Prêmio de Consagração da Sociedade Portuguesa de Autores. Nos anos seguintes publicou mais um volume de Cadernos de Lanzarote, Todos os Nomes, e o belíssimo Conto da Ilha Desconhecida. A essa altura, Saramago é mais que reconhecido mundialmente, tendo recebido todos os prêmio importantes portugueses, alguns italianos e uma condecoração francesa. Porém, faltava o prêmio maior que um escritor pode almejar em sua carreira, se assim posso dizer.

CONTRACANTO
Aqui, longe do sol, que mais farei
Senão cantar o bafo que me aquece?
Como um prazer cansado que adormece
Ou preso conformado com a lei.
Mas neste débil canto há outra voz
Que tenta libertar-se da surdina,
Como rosa-cristal em funda mina
Ou promessa de pão que vem nas mós.
Outro sol mais aberto me dará
Aos acentos do canto outra harmonia,
E na sombra direi que se anuncia
A toalha de luz por onde vá.

 

 

Após o Prêmio Nobel, sua vida fica muito mais movimentada, com viagens pelo mundo, palestras, recebe inúmeros títulos Doutor Honoris Causa. Através de uma iniciativa diplomática do Primeiro Ministro Durão Barroso, Saramago reconcilia-se com seu país, após suspensão do processo de censura. Após o evento, o mesmo Primeiro Ministro cria a Cátedra José Saramago na Universidade Autônoma do Mexico. Sua peças são encenadas sucessivamente, é criada uma biblioteca em sua casa de Lanzarote. Em 2007, é criada a Fundação José Saramago. Até então, desde 1998, Saramago publica Folhas Políticas; A Caverna, A Maior Flor do Mundo, O Homem Duplicado; Ensaio Sobre a Lucidez; Don Giovanni ou o Dissoluto Absolvido; As Intermitências da Morte e Pequenas Memórias.

SALMO 136

Nem por abandonadas se calavam
As harpas dos salgueiros penduradas.
Se os dedos dos hebreus as não tocavam,
O vento de Sião, nas cordas tensas,
A música da memória repetia.
Mas nesta Babilónia em que vivemos,
Na lembrança Sião e no futuro,
Até o vento calou a melodia.
Tão rasos consentimos nos pusessem,
Mais do que os corpos, as almas e as vontades,
Que nem sentimos já o ferro duro,
Se do que fomos deixarem as vaidades.

Têm os povos as músicas que merecem.

 

 

 

No dia 18 de dezembro de 2008, Saramago é internado por causa de uma pneumonia, que lhe causaria sérios danos à saúde. Meses mais tarde, é homenageado em Portugal com uma exposição sobre sua vida e obra. Em 14 de maio, em Cannes, estreia o filme Blindness, adaptação do livro Ensaio Sobre a Cegueira, realizada pelo diretor Fernando Meirelles, com elenco de peso. Saramago se emociona profundamente após ver o filme. Termina o livro Caderno de Elefante. Em outubro de 2009, publica seu último livro, Caim. Em dezembro, arranja forças e vai visitar Aminatu Haidar, defensora dos Direitos Humanos que fazia greve de fome após ter sua entrada impedida em Marrocos. Ainda realiza uma campanha para arrecadar fundos para as vítimas do terremoto no Haiti.

BALADA

Dei a volta ao continente
Sem sair deste lugar
Interroguei toda a gente
Como o cego ou o demente
Cuja sina é perguntar

Ninguém me soube dizer

Onde estavas e vivias

(Já cansados de esquecer
Só vivos para morrer
Perdiam a conta aos dias)

Puxei da minha viola
Na soleira me sentei

Com a gamela da esmola

Com pão duro na sacola
Desiludido cantei

Talvez dissesse romanças
Ou cantigas de encantar
Aprendidas nas andanças
Das poucas aventuranças
De quem não soube esperar

Andavam longe os teus passos
Nem as cantigas ouviste
Vivias presa nos laços
Que faziam outros braços
No teu corpo que despiste

Quanto tempo ali fiquei
Sangrando os dedos nas cordas
Quantos arrancos soltei
Nesta fome que criei
Nem eu sei nem tu recordas
Porque nunca tos contei

Até que um dia cansaste
(Era pó não era monte)
Outra lembrança deixaste
E nas águas desta fonte
A tua sede mataste
— O arco da minha ponte

 

 

No dia 18 de junho de 2010, José Saramago morre em sua casa em Lanzarote. Um avião da Força Aérea Portuguesa trouxe os restos mortais do escritor para Portugal, que foi velado na Câmara Municipal de Lisboa, e depois cremado no cemitério Alto de São João. Assim terminamos este estudo sobre a poesia do grande escritor. Dois livros, foi o que produziu em versos. Espero que tenham gostado de sua poesia, que tenha servido para alguma coisa, pois a poesia serve para quem precisa dela. No fim da vida, Saramago revela que “gostaria de ter escrito um livro chamado Livro do Desassossego, mas Fernando Pessoa antecipou-se. O meu desassossego não é o mesmo dele, mas o título convinha-me. Como não tive sossego, quero desassossegar os outros”. Semana que vem, RESTROSPECTIVA 2010.

PEQUENO COSMOS

Ah, rosas, não, nem frutos, nem rebentos.
Horta e jardim sobejam nestes versos
De consonâncias velhas e bordões.

Navegante dum espaço que rodeio
(Noutra hora diria que infinito),
É por fome de frutos e de rosas
Que a frouxidão da pele ao osso chega.

Assim árido, e leve, me transformo:
Matéria combustível na caldeira
Que as estrelas ateiam onde passo.

Talvez, enfim, o aço apure e faça
Do espelho em que me veja e redefina.

 

 

 

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