Florbela Espanca

Florbela d’Alma da Conceição Espanca nasceu no dia 8 de dezembro de 1894, em Vila Viçosa, Alentejo, na casa de sua mãe Antónia da Conceição Lobo. A casa ficava localizada na Rua do Angerino. Seu pai era republicano e se chamava João Maria Espanca, e era casado com Mariana do Carmo Ingleza. Após o nascimento de Florbela, João faz com que sua esposa torne-se madrinha de batismo na filha. Nos registros da Igreja Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, Florbela está registrada como “filha ilegítima de pai incógnito”. Vamos por aqui.




SONHOS


Sonhei que era a tua amante querida,
A tua amante feliz e invejada;
Sonhei que tinha uma casita branca
À beira dum regato edificada…

Tu vinhas ver-me, misteriosamente,
A horas mortas quando a terra é monge
Que reza. Eu sentia, doidamente,
Bater o coração quando de longe

Te ouvia os passos. E anelante,
Estava nos teus braços num instante,
Fitando com amor os olhos teus!

E, vê tu, meu encanto, a doce mágoa:
Acordei com os olhos rasos d’água,
Ouvindo a tua voz num longo adeus!
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Florbela teve um irmão, Apeles, também filho da mesma mãe e pai com o mesmo registro de “filho ilegítimo de pai incógnito”. Em 1899, Florbela faz os estudos primários em Vila Viçosa. O pai trabalha com antiquário, viajando muito, até que em 1900 torna-se um dos introdutores do cinematógrafo em Portugal, projetando para todo o país, filmes em salas particulares com o “Vitascópio de Edson”. Apaixonado por fotografia, chega a abrir um estúdio em Évora, chamado “Photo Calypolense de J.M.Espanca”. Com isso, Florbela desenvolve um imenso gosto por fotografia e tornando-se a modelo preferida de seu pai.
FLORES DE ROSA
Todas as prendas que me deste, um dia,
Guardei-as, meu encanto, quase a medo,
E quando a noite espreita o pôr-do-sol,
Eu vou falar com elas em segredo…
E falo-lhes d’amores e de ilusões,
Choro e rio com elas, mansamente…
Pouco a pouco o perfume de outrora
Flutua em volta delas, docemente…
Pelo copinho de cristal e prata
Bebo uma saudade estranha e vaga,
Uma saudade imensa e infinita
Que, triste, me deslumbra e m’embriaga.
O espelho de prata cinzelada,
A doce oferta que eu amava tanto,
Que refletia outrora tantos risos,
E agora reflete apenas pranto,
E o colar de pedras preciosas,
De lágrimas e estrelas constelado,
Resumem em seus brilhos o que tenho
De vago e de feliz no meu passado…
Mas de todas as prendas, a mais rara,
Aquela que mais fala à fantasia,
São as folhas daquela rosa branca
Que a meus pés desfolhaste, aquele dia…
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Em diversas ocasiões, pai de Florbela e o pai de Milburges Ferreira, sua vizinha e amiga Buja, republicanos, foram perseguidos por serem considerados inimigos do regime monárquico. Em 1903, no dia 11 de novembro, data provável do primeiro poema escrito por Florbela, “A vida e a morte”, aos nove anos de idade. Poema feito na tenra infância, que consta “como uma forma de aproximação e devoção ao pai e ao irmão”.



FADO


Corre a noite, de manso num murmúrio,
Abre a rosa bendita do luar…
Soluçam ais estranhos de guitarra…
Oiço, ao longe, não sei que voz chorar…

Há um repoiso imenso em toda a terra,
Parece a própria noite a escutar…
E o canto continua mais profundo
Que a página sentida de Mozart!

É o fado. A canção das violetas:
Almas de tristes, almas de poetas,
Pra quem a vida foi uma agonia!

Minha doce canção dos deserdados,
Meu fado que alivias desgraçados,
Bendito sejas tu! Ave Maria!…
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No dia 1 de fevereiro de 1908, dia do aniversário de João Maria Espanca, o rei D. Carlos e o príncipe herdeiro D. Luís Felipe são assassinados em Lisboa. A partir desse acontecimento, não demoraria para a instauração da República em Portugal. Nesta época, Florbela ingressa no Liceu de Évora, onde ficaria até 1912. Para ajudar, a família de muda para Évora. Ainda no mesmo ano de 1908, falece em Vila Viçosa, a mãe de Florbela, Antónia da Conceição Lobo, com 29 anos de idade.


VERDADES CRUÉIS


Acreditar em mulheres
É coisa que ninguém faz;
Tudo quanto amor constrói
A inconstância desfaz.

Hoje amam, amanhã ‘squecem,
Ora dores, ora alegrias;
E o seu eternamente
Dura sempre uns oito dias


Li um dia, não sei onde,
Que em todos os namorados
Uns amam muito, e os outros
Contentam-se em ser amados.

Fico a cismar pensativa
Neste mistério encantado…
Digo pra mim: de nós dois
Quem ama e quem é amado?…
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Em 1913, Florbela batiza o primo Túlio Espanca, a quem se dedicará como assídua madrinha. Túlio se tornaria  um importante intelectual português. No mesmo ano, no dia de seu aniversário, aos dezenove anos, Florbela casa-se na Conservadoria do Registro Civil de Vila Viçosa, com Alberto de Jesus Moutinho, antigo amigo do primário. No ano seguinte, Florbela e o marido vão morar em Redondo. Tempos difíceis, falta dinheiro, as aulas para alunos particulares não são suficientes, então, em 1915, o casal volta para Évora para viver na casa do pai de Florbela.


A poesia de Guimarães Rosa https://cartilhadepoesia.wordpress.com


MENTIRAS


“Ai quem me dera uma feliz mentira
Que fosse uma verdade para mim”
J. Dantas


Tu julgas que eu não sei que tu me mentes
Quando o teu doce olhar poisa no meu?
Pois julgas que eu não sei o que tu sentes?
Qual a imagem que alberga o peito teu?

Ai, se o sei, meu amor! Eu bem distingo
O bom sonho da feroz realidade…
Não palpita d’amor, um coração
Que anda vogando em ondas de saudade!

Embora mintas bem, não te acredito;
Perpassa nos teus olhos desleais,
O gelo do teu peito de granito…

Mas finjo-me enganada, meu encanto,
Que um engano feliz vale bem mais
Que um desengano que nos custa tanto!
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Em 1914, Mariana Ingleza encontra-se doente e o pai de Florbela passa a viver livremente com a empregada Henriqueta de Almeida, se divorciaria anos depois para se casar com a nova mulher. Em 1916, Florbela reune poemas para formar o projeto de Trocando Olhares, 88 ao todo. Neste mesmo ano colabora com os suplementos, Notícias de Évora e A Voz Pública, com poemas. Com a entrada de Portugal na Primeira Guerra Mundial, Florbela, entusiasmada com a causa republicana, inicia o projeto de Alma de Portugal.



 Tradução de Mauvais Sang, de Saison en Enfer de Rimbaud aqui http://pedrolago.blogspot.com


DESALENTO


Às vezes oiço rir, e ‘ma agonia
Queima-me a alma como estranha brasa.
Tenho ódio à luz e tenho raiva ao dia
Que me põe n’alma o fogo que m’abrasa!

Tenho sede d’amar a humanidade…
Eu ando embriagada… entorpecida…
O roxo de meus lábios é saudade
Duns beijos que me deram noutra vida!

Eu não gosto do Sol, eu tenho medo
Que me vejam nos olhos o segredo
De só saber chorar, de ser assim…

Gosto da noite, negra, triste, preta,
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!
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Florbela envia os originais de Primeiros Passos a Raul Proença, por intermédio do pai. Raul é o primeiro crítico a reconhecer a personalidade poética de Florbela, o que seria fundamental para seu caminho. Logo após, Florbela também engendra novo projeto de livro, com Minha Terra, Meu Amor. A esta altura, Florbela é explicadora do mesmo colégio e conclui o Curso Complementar de Letras, em 1917. Em novembro de 1917, Florbela, vivendo em Lisboa, subsidiada pelo pai, matricu-la-se na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Dos 347 alunos, 14 são mulheres.


Gotas e outras constatações http://equivocos-pedrolago.blogspo.com


LÁGRIMAS OCULTAS


Se me ponho a cismar e outras eras
Em que ri e cantei, em que era qu’rida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida…

E a minha triste boca dolorida
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago…
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim…

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!
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Em 1918, Florbela encontra-se adoentada e segue com o marido para Quelfes (Algarve) para uma temporada de repouso. Neste período inicia o projeto de Livro de Mágoas, que, em junho de 1919 sai pela Tipografia Maurício de Lisboa. Logo depois, Florbela começa a trabalhar em Livro do Nosso Amor e Claustro de Quimeras. Em 1921, é decretado o divórcio entre Florbela e Moutinho. Meses depois, casa-se novamente, com alferes de artilharia da Guarda Republicana, António José Marques Guimarães. O casal se muda para Lisboa.

A FLOR DO SONHO


A Flor do Sonho alvíssima, divina
Miraculosamente abriu em mim,
Como se uma magnólia de cetim
Fosse florir num muro todo em ruína.

Pende em meu seio a haste banda e fina.
E não posso entender como é que, enfim,
Essa tão rara flor abriu assim!…
Milagre… fantasia… ou talvez, sina…

Ó Flor que em mim nasceste sem abrolhos,
Que tem que sejam tristes os meus olhos
Se eles são tristes pelo amor de ti?!…

Desde que em mim nasceste em noite calma,
Voou ao longe a asa da minh’alma
E nunca, nunca mais eu me entendi…
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Apeles sobe patentes na Marinha e presta serviços no cruzador “Carvalho-Araújo” que transporta de Portugal para o Brasil um dos aviões utilizados por Gago Coutinho e Sacadura Cabral na travessia aérea sobre o Atlântico. Florbela acompanha tudo pelos jornais e cartas. Em janeiro de 1923, sai Soror de Saudade. No fim do mesmo ano, mais uma doença. Em 1924, António Guimarães entra com pedido de divórcio contra Florbela, seu segundo. Fato curioso é que do espólio de António se encontrava o mais abundante material sobre Florbela publicado depois de sua morte.


PARA QUE?!…


Tudo é vaidade neste mundo vão…
Tudo é tristeza; tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!

Até o amor nos mente, essa canção
Que o nosso peito ri à gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão!…

Beijos d’amor! Pra quê?!… Tristes vaidades!
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!

Só acredita neles quem é louca!
Beijos d’amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta!…
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Em outubro de 1925, Florbela casa-se novamente, no civil, com Mário Pereira Lage, médico, tinha 32 anos. O casal passa a morar em Esmoriz e depois para a casa dos pais de Mário, em Matosinhos. Em 1926, é publicado o decreto ditatorial que dissolve o Congresso da República. Apeles torna-se primeiro-tenente da Marinha. Durante o ano de 1927, Florbela passa a colaborar no D.Nuno de Vila Viçosa, com poemas. Passa também a traduzir romances franceses para a Civilização do Porto.


SAUDADES


Saudades! Sim… talvez…e por que não?…
Se o nosso sonho foi tão alto e forte
Que bem pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!

Esquecer! Para quê?… Ah, como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-os ser sagrado como o pão!

Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar,
Mais doidamente me lembrar de ti!

E quem dera fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais a saudade andasse presa a mim!
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No dia 6 de junho de 1927, Apeles, mergulha no Tejo em treino num hidroavião, morre, assim como havia exposto para Florbela em carta, tragicamente após a morte de sua mulher em 1925. Florbela começa a produzir um livro de contos à memória do irmão. Apesar do esforço, Florbela inicia uma fase de depressão, doente dos nervos, fumando em demasia e emagracendo sensivelmente.


Fumaças e Presenças em http://equivocos-pedrolago.blogspot.com


SE TU VIESSES VER-ME


Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses todas nos teus braços…

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca…o eco dos teus passos…
O teu riso de fonte… os teus abraços…
Os teus beijos…a tua mão na minha…

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca…
Quando os olhos se me cerram de desejo…
E os meus braços se estendem para ti…
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Em 1930, Florbela começa a colaborar com o recém fundado Portugal Feminino com poemas e contos. De vez em quando vai para Lisboa e Évora onde participa de reuniões da revista feminina. Há inclusive uma imagem de Florbela ao lado de outras intelectuais e feministas portuguesas como Elina Guimarães, Maria Amélia Teixeira, Branca da Gonta Colaço e outras. Florbela mostra sua solidão em Diário do último ano “o olhar dum bicho comove-me mais que um olhar humano. Há lá dentro uma alma que quer falar que não pode, princesa encantada por qualquer fada má […] Ah, ter quatro patas e compreender a súplica humilde, a angustiosa ansiedade daquele olhar!”



A NOSSA CASA



A nossa casa, Amor, a nossa casa!
Onde está ela, Amor, que não a vejo?
Na minha doida fantasia em brasa
Constrói-a, num instante, o meu desejo!
Onde está ela, Amor, a nossa casa,
O bem que neste mundo mais invejo?
O brando ninho aonde o nosso beijo
Será mais puro e doce que uma asa?
Sonho… que eu e tu, dois pobrezinhos,
Andamos de mãos dadas, nos caminhos
Duma terra de rosas, num jardim,
Num país de ilusão que nunca vi…
E que eu moro — tão bom! — dentro de ti
E tu, ó meu Amor, dentro de mim…
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No dia 18 de junho de 1930, Florbela inicia correspondência com Guido Battelli, com quem revisa e discute aspectos estéticos de Charneca em Flor, seu último projeto. A está altura, certo decadentismo toma conta de seus temas, algo que predomina, embora não tomando por completo a obra da poeta. Porém, Florbela encerra o diário em 2 de dezembro de 1930 com uma única frase “e não haver gestos novos nem palavras novas!”.



CHOPIN


Não se acende hoje a luz… Todo o luar
Fique lá fora. Bem aparecidas
As estrelas miudinhas, dando no ar
As voltas dum cordão de margaridas!

Entram falenas meio entontecidas…
Lusco-fusco… Um morcego, a palpitar,
Passa… torna a passar… torna a passar…
As coisas têm o ar de adormecidas…

Mansinho… Roça os dedos p’lo teclado,
No vago arfar que tudo alteia e doira,
Alma, Sacrário de Almas, meu Amado!

E, enquanto o piano a doce queixa exala,
Divina e triste, a grande sombra loira,
Vem para mim da escuridão da sala…

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Na passagem de 7 para 8 de dezembro, no dia de seu aniversário, Florbela D’Alma da Conceição Espanca suicida-se em Matosinhos, aos 36 anos, ingerindo dois frascos de Veronal, uma espécie de sedativo e sonífero. Foi enterrada no mesmo dia no Cemitério de Sedim. No dia 17 de maio de 1964, seus restos mortais são transportados para o Cemitério de Vila Viçosa, “a terra alentejana a que entranhadamente quero”, como se referiu em carta a José Emídio Amaro em 15 de maio de 1927. Florbela foi homenageada por muitos poetas, dentre eles Manuel da Fonseca e Fernando Pessoa, que escreve “alma sonhadora/Irmã gêmea da minha”. Assim, terminamos essa antologia. Bom Carnaval para todos!

AMOR QUE MORRE


O nosso amor morreu… Quem o diria!
Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta.
Ceguinha de te ver, sem ver a conta
Do tempo que passava, que fugia!

Bem estava a sentir que ele morria…
E outro clarão, ao longe, já desponta!
Um engano que morre… e logo aponta
A luz doutra miragem fugidia…

Eu bem sei, meu Amor, que pra viver
São precisos amores, pra morrer
E são precisos sonhos pra partir.

Eu bem sei, meu Amor, que era preciso
Fazer do amor que parte o claro riso
Doutro amor impossível que há de vir!

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