Bocage

Manuel Maria Barbosa du Bocage nasceu em Setúbal, Portugal, a 15 de setembro de 1765. Seu pai, José Luís Soares de Barbosa era bacharel em Cânones e lá trabalhava como advogado. Sua mãe D. Mariana Joaquina Xavier Lestof du Bocage era filha de francês, o vice-almirante da armada portuguêsa Gil Le Doux du Bocage. O casal teve seis filhos e o nosso homenageado do mês foi o quarto a nascer. A sua irmã caçula, D. Maria Francisca, foi-lhe durante a vida inteira uma companheira permanente, e quem, após sua morte, guardou grande parte de seus manuscritos. Senhoras e senhores, com vocês, um dos maiores poetas de nossa língua, o grande Bocage.

O AUTOR AOS SEUS VERSOS

Chorosos versos meus desentoados,

Sem arte, sem beleza e sem brandura,

Urdidos pela mão da Desventura,

Pela baça Tristeza envenenados:

Vede a luz, não busqueis, desesperados,

No mudo esquecimento a sepultura;

Se os ditosos vos lerem sem ternura,

Ler-vos-ão com ternura os desgraçados:

Não vos inspire, ó versos, cobardia

Da sátira mordaz o furor louco,

Da maldizente voz e tirania:

Desculpa tendes, se valeis tão pouco,

Que não pode cantar com melodia

Um peito de gemer cansado e rouco.

Seu pai, que tinha grande conhecimento literário e gostava muito de poesia, logo percebeu o talento do filho e investiu na sua formação. Aos 14 anos já havia ingressado na infantaria de Setúbal e tinha aulas de latim. Isso, refletiu na sua poesia, sem falar nas traduções de Virgílio e Ovídio. Em 1779, foi para Lisboa para estudar na Academia Real da Marinha, entretanto, foi na capital que conheceu a vida boemia e de dissipação. Foi também nesta época que tomou conhecimento das modinhas brasileiras que dominavam os salões. Acho que é importante frisar esta questão pré-brasileira e boemia, pois poderemos compreender algumas fases de sua poesia. Sempre o Brasil alí no meio.

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VISÃO REALIZADA

Sonhei que a mim correndo o gnídeo nume

Vinha coa Morte, co Ciúme ao lado,

E me bradava: -“Escolhe, desgraçado,

Queres a Morte, ou queres o Ciúme?

Não é pior daquela foice o gume

Que a ponta dos farpões que tens provado;

Mas o monstro voraz, por mim criado,

Quanto horror há no Inferno em si resume.”

Disse; e eu dando um suspiro: “Ah, não m’espantes

Coa a vista dessa fúria!… Amor, clemência!

Antes mil mortes, mil infernos antes!”

Nisto acordei com dor, com impaciência;

E não vos encontrando, olhos brilhantes,

Vi que era a minha morte a vossa ausência!

Em Portugal no fim do século XVIII, não havia individualidade entre os poetas. Os poetas se entregavam à bajulação dos poderosos que se tornavam uma necessidade para que tais poetas tivessem notoriedade, ou até mesmo trabalho. Eram versos encomiásticos, ou seja, que apenas elogiavam os poderosos e, não o fazer, era de certa forma indigno. Bocage foi contra isso, achava uma maneira sedutora de popularizar-se, mesmo podendo sofrer com as possíveis chacotas. Assim, motivado pela situação, viaja para Índia através do Conselho Ultramarino, porém, fazendo escala no Rio de Janeiro. O governador-geral da capital da colonia era Luís de Vasconcelos Sousa Veiga Caminha e Faro, que era conhecido pela ajuda às letras e às ciências. Bocage, agora, já fazia fama no Brasil. Isto era 1786.

PROPOSIÇÃO DAS RIMAS DO POETA

Incultas produções da mocidade

Exponho a vossos olhos, ó leitores:

Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,

Que elas buscam piedade, e não louvores:

Ponderai da Fortuna a variedade

Nos meus suspiros, lágrimas e amores;

Notai dos males seus a imensidade,

A curta duração de seus favores:

E se entre versos mil de sentimento

Encontrardes alguns cuja aparência

Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência

Escritos pela mão do Fingimento,

Cantados pela voz da Dependência.

Bocage viveu dois anos em Goa, na Índia, uma ilha que fala nosso português, onde permaneceu sob desalento, nostalgia, tomado pelas intrigas da sociedade local, e chegou a ficar doente. Porém, neste estado, compôs suas melhores sátiras e alguns de seus sonetos mais conhecidos. Atribui-se a sua saída de Goa ao poema erótico-obsceno, A Manteigui, nome da amante do governador local (os poemas deste motivo ficarão para mais tarde). De Goa seguiu para Damão, lá nomeado em 25 de fevereiro de 1789, tenente da infantaria da 5ª Companhia da Guarnição. Mas não suportou o tédio e fugiu para Macau. Ficou por lá alguns meses e foi parar em Cantão, na China. Nosso poeta vai peregrinando e sua poesia vai mudando.

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ACHANDO-SE AVASSALADO PELA FORMOSURA DE JÔNIA

Enquanto o sábio arreiga o pensamento

Nos fenonemos teus, oh Natureza

Ou solta árduo problema, ou sobre a mesa

Volve o subtil geométrico instrumento :

Enquanto, alçando a mais o entendimento,

Estuda os vastos céus, e com certeza

Reconhece dos astros a grandeza,

A distância, o lugar, e o movimento :

Enquanto o sábio, enfim, mais sabiamente,

Se remonta nas asas do sentido

À corte do Senhor omnipresente:

Eu louco, cego, eu mísero, eu perdido

De ti só trago cheia, ó Jonia, a mente :

Do mais, e de mim mesmo ando esquecido ..

Após sua passagem por Macau, em 1790, enfim, consegue retornar a Lisboa. Lá era considerado literalmente um “louco” com talento. Publicou versos, polemizou com os neo-árcades, continuou a ser seguido e perseguido pelo Intendente Manique (uma espécie de Inspetor Javert, grande personagem de Victor Hugo, só que português), interessou-se pela Revolução Francesa, colocando algumas idéias em seus versos, traduziu as Metamorfoses de Ovídio, tem uma briga literária com José Agostinho de Macedo (escritor do tipo polêmico e agressivo, fez um trabalho sobre a maçonaria), até que em 1797 é preso devido à suas declarações antimonárquicas e anticatólicas e, sobretudo, por uma briga com oficiais por estar distribuindo folhetos sobre a Revolução Francesa.

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POETA ASSETEADO POR AMOR

Ó Céus! Que sinto n’alma! Que tormento!

Que repentino frenesi me anseia!

Que veneno a ferver de veia em veia

Me gasta a vida, me desfaz o alento!

Tal era, doce amada, o meu lamento;

Eis que esse deus, que em prantos se recreia,

Me diz: “A que se expõe quem não receia

Contemplar Ursulina um só momento!

Insano! Eu bem te vi dentre a luz pura

De seus olhos travessos, e cum tiro

Puni tua sacrílega loucura:

De morte, por piedade hoje te firo;

Vai pois, vai merecer na sepultura

À tua linda ingrata algum suspiro.”

Deve ter sido muito difícil ser poeta em Portugal depois de Camões. Bocage sabia disso, e guardava uma profunda admiração pelo grande poeta e nele bebeu bastante, porém, o que Bocage não concordava era com a postura de seus poetas contemporâneos. Não havia uma identidade, não havia a coragem guerreira que havia em Camões, e sim, um mar de bajulações. Bocage foi contra tudo isso. Escreveu o que vivia, sem medos nem coerções, algo que se espera de um poeta, por isso sua poesia transcende e hoje estamos aqui para lembrá-lo. Poeta prolixo, escrevia em qualquer situação e o que fosse. Sonetos, odes, canções ou cantos, elegias, epicédios, idílios, cantatas, epístolas, sátiras, odes anacreônticas, quadras, apólogos, adivinhações, sem falar nas traduções e seus conhecidos poemas pornográficos.

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ACHANDO-SE AVASSALADO PELA FORMOSURA DE JÔNIA

Enquanto o sábio arreiga o pensamento

Nos fenômenos teus,ó Natureza,

Ou solta árduo problema,ou sobre a mesa

Volve o subtil geométrico instrumento:

Enquanto,alçando a mais o entendimento,

Estuda os vastos céus,e com certeza

Reconhece dos astros a grandeza,

A distância,o lugar e o movimento:

Enquanto o sábio,enfim,mais sabiamente

Se remonta nas asas do sentido

À corte do Senhor omnipotente:

Eu louco,eu cego,eu mísero,eu perdido,

De ti só trago cheia,ó Jónia,a mente;

Do mais ,e de mim mesmo ando esquecido.

É fato que Bocage não teve uma infância feliz. Seu pai foi preso por dívidas ao Estado quando o poeta tinha seis anos e lá permanceu preso por seis anos. Sua mãe faleceu quando ele tinha dez. Viu na Marinha uma saída e lá fez seus estudos. A poesia veio neste período, como uma necessidade. É notória sua “pena afiada”, parece que o poeta colocou todas as suas indignações na poesia, talvez (opinião minha) que há um tom irônico, muitas vezes sarcástico e erótico em seus versos. Não parou com seu caminho quando enquanto perseguido pela polícia e pelos padres. Fora isso, há também a questão boêmia que lhe custou muitos versos.

GOZO FANTÁSTICO

Debalde um véu cioso, oh Nise, encobre

Intactas perfeições ao meu desejo;

Tudo o que escondes, tudo o que não vejo

A mente audaz e alígera descobre:

Por mais e mais que as sentinelas dobre

A sisuda Modéstia, o cauto Pejo,

Teus braços logro, teus encantos beijo,

Por milagre da idéia afoita, e nobre:

Inda que prêmio teu rigor me negue,

Do pensamento a indômita porfia

Ao mais doce prazer me deixa entregue:

Que pode contra Amor a tirania,

Se as delícias, que a vista não consegue,

Consegue a temerária fantasia?

Bocage era grande admirador de Camões. Nâo somente por sua poesia, mas também pela sua tragetória de vida. Bocage revelara uma vez que Camões era seu modelo, porém, lamentava a comparação “pelos transes da ventura” e não pela grandeza poética. Mas as semelhanças são diversas: Ambos seguiram na marinha, cruzaram o Cabo da Boa Esperança, eram boêmios, tiveram diversos amores, desamores e morreram quase na miséria. Vale lembrar que o conhecido lirismo camoniano nada tem a ver com a ironia bocagiana, e realmente deve ser difícil ser poeta ainda naquela época, depois de Camões, mas Bocage o foi com maestria.

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A CAMÕES, COMPARANDO COM OS DELE SEUS INFORTÚNIOS

Camões, grande Camões, quão semelhante

Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!

Igual causa no fez perdendo o Tejo

Arrostar co sacrílego gigante:

Como tu, junto ao Ganges sussurrante

Da penúria cruel no horror me vejo:

Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,

Também carpindo estou, saudoso amante:

Ludibrio, como tu, da sorte dura

Meu fim demando ao Céu, pela certeza

De que só terei paz na sepultura:

Modelo meu tu és…

Mas, oh tristeza!…

Se te imito nos transes da ventura,

Não te imito nos dons da Natureza.

Como consta, BOcage não era um poeta conceitual, voltado para grandes questões, e sim, pela sua ironia que a poesia se estendeu longínquamente. Fazia sátiras como ninguém, digo, ninguém mesmo, pois Bocage foi o único de sua época, pelo que se sabe até hoje, que foi contra as questões políticas e religiosas de sua época, quase que um gauche, lembrando nosso poeta Carlos. Bocage ridicularizou inúmeras pessoas, com escrita afiada e grande capacidade e grandeza poética. Ontem, conversando com amigas, chegamos a conclusão de que a inveja, em certos níveis, pode causar paixão. Ainda sobre sua admiração por Camões…

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EM LOUVOR DO GRANDE CAMÕES

Sobre os contrários o terror e a morte

Dardeje embora Aquiles denodado,

Ou no rápido carro ensanguentado

Leve arrastos sem vida o Teuco forte:

Embora o bravo Macedónio corte

Coa fulminante espada o nó fadado,

Que eu de mais nobre estímulo tocado,

Nem lhe amo a glória, nem lhe invejo a sorte:

Invejo-te, Camões, o nome honroso;

Da mente criadora o sacro lume,

Que exprime as fúrias de Lieu raivoso:

Os ais de Inês, de Vénus o queixume,

As pragas do gigante proceloso,

O céu de Amor, o inferno do Ciúme.

A modinha é considerada o primeiro estilo de música popular brasileira, como consta por aí, é atribuída a Domingos Caldas Barbosa. Lá pelo século XVII, na Bahia, a modinha era tocada nas ruas, acompanhada por uma viola com marcação em staccato (como também consta, é um tipo de fraseio ou de articulação no qual as notas e os motivos das frase musicais devem ser executadas com suspensões entre elas, ficando as notas com curta duração), cujas letras tinham conteúdo pagão. Algo bem bacante por sinal. Bocage conheceu a modinha quando veio ao Brasil por volta de 1786, quando ainda tinha 20 anos, além da modinha, conheceu outras maravilhas brasileiras também. Creio que para um poeta de 20 anos, português, no século XVII, vir ao Brasil com certeza desencaminha, ou, encaminha.

texto Laranjeiras no blog http://pedrolago.blogspot.com

A UM MULATO JOAQUIM MANUEL, GRANDE TOCADOR DE VIOLA E IMPROVISADOR DE MODINHAS

Esse cabra ou cabrão, que anda na berra,

Que mamou no Brasil surra e mais surra,

O vil estafador da vil bandurra,

O perro, que nas cordas nunca emperra:

O monstro vil que produziste, ó Terra

Onde narizes Natureza esmurra,

Que os seus nadas harmônicos empurra,

Com parda voz, das paciências guerra;

O que sai no focinho à mãe cachorra,

O que néscias aplaudem mais que a “Mirra”,

O que nem veio de prosápia forra;

O que afina inda mais quando se espirra,

Merece à filosófica pachorra

Um corno, um passa-fora, um arre, um irra.

Nesta semana veremos aqueles poemas os quais, pelo que me parece, a grande maioria conhece do poeta Bocage. Escrever poemas pornogáficos, para mim, é um grande questão para o poeta. Pois as emoções geradas pela libido, pela volúpia ou pelos exageros da luxúria são tão fundamentais quanto a necessidade de se falar de amor, por exemplo. Só que o poeta, às vezes, esbarra no medo do vulgar, do mau gosto, da contramão daquilo que se “espera” dele, e aí é que começa o erro. Se o motivo bate a sua porta, não há o que fazer, a não ser abraçá-lo.

texto “Beijos” no blog http://pedrolago.blogspot.com

SONETO IV (MARGINAIS)

Num capote embrulhado, ao pé de Armia,

Que tinha perto a mãe o chá fazendo,

Na linda mão lhe fui (oh céus) metendo

O meu caralho, que de amor fervia:

Entre o susto, entre o pejo a moça ardia;

E eu solapado os beiços remordendo,

Pela fisga da saia a mão crescendo

A chamada sacana lhe vazia:

Entra a vir-se a menina… Ah! que vergonha!

“Que tens?” – lhe diz a mãe sobressaltada:

Não pode ela encobrir na mão langonha:

Sufocada ficou, a mãe corada:

Finda a partida, e mais do que medonha

A noite começou de bofetada.

Quando Drummond enfim publicou seus poemas pornográficos, já era poeta consagrado, mas mesmo assim causou certa estupefação. Vinícius conseguiu um linha onde falava de coisas como “Toquei-lhe a dura pevide/Entre o pêlo que a guardava/Beijando-lhe a coxa fria/Com gosto de cana brava/Senti à pressão do dedo/Desfazer-se desmanchada/Como um dedal de segredo/A pequenina castanha/Gulosa de ser tocada.” sem ser vulgar. Mas ora, por que chamar de vulgar algo tão essencial? Esta é a questão. Tem um da Adélia Prado que é uma beleza que chama-se Objeto de Amar, mas quem quiser ver que procure, já basta aqui o nosso Bocage.

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SONETO XIII (MARGINAIS)

É pau, e rei dos paus, não marmeleiro,

Bem que duas gamboas lhe lobrigo;

Dá leite, sem ser árvore de figo,

Da glande o fruto tem, sem ser sobreiro:

Verga, e não quebra, como zambujeiro;

Oco, qual sabugueiro tem o umbigo;

Brando às vezes, qual vime, está consigo;

Outras vezes mais rijo que um pinheiro:

À roda da raiz produz carqueja:

Todo o resto do tronco é calvo e nu;

Nem cedro, nem pau-santo mais negreja!

Para carvalho ser falta-lhe um U;

Adivinhem agora que pau seja,

E quem adivinhar meta-o no cu.

Isso aí!

Bocage experimentou a vida boêmia em todos os lugares por onde passou. Lisboa, Macau, Goa, Brasil, Damão e, em todos estes lugares, envolveu-se ora com as prostitutas, ora com as mulheres casadas. Me parece que despertava um fascínio nas mulheres casadas, pois, não são poucos seus poemas dedicados à elas, tampouco seus problemas com relação a isso. Nise, citada inúmeras vezes com ternura em outros poemas, aqui se encontra em outro estado. Ela foi apenas mais uma de suas amantes, que como consta, o traira e o abandonara.

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SONETO VI (MARGINAIS)

Não lamentes, oh Nise, o teu estado;

Puta tem sido muita gente boa;

Putíssimas fidalgas tem Lisboa,

Milhões de vezes putas têm reinado:

Dido foi puta, e puta d’um soldado;

Cleópatra por puta alcança a c’roa;

Tu, Lucrécia, com toda a tua proa,

O teu cono não passa por honrado:

Essa da Rússia imperatriz famosa,

Que inda há pouco morreu (diz a Gazeta)

Entre mil porras expirou vaidosa:

Todas no mundo dão a sua greta:

Não fiques pois, oh Nise, duvidosa

Que isso de virgo e honra é tudo peta.

Quando viveu em Goa, Bocage foi alvo de intrigas da sociedade local. Sofria com nostalgias, desalentos, chegando inclusive a ficar doente. Porém, foi lá que compôs das suas melhores sátiras e alguns de seus poemas eróticos mais conhecidos, o que ainda lhe dificultou a vida. Viver na colônia de um país conservador como Portugal e ainda gozar de idéias extremamente liberais foi um pouco demais. Atribui-se a saída de Bocage de Goa à publicação do poema erótico A Manteigui, que era o nome da amante do governador local. Segue alguns trechos.

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A MANTEIGUI (TRECHOS)

Canto a beleza canto a putaria

De um corpo tão gentil como profano;

Corpo que, a ser preciso, engoliria

Pelo vaso os martelos de Vulcano:

Corpo vil, que trabalha mais num dia

Do que Martinho trabalhou num ano;

E que atura as chumbadas e pelouros

De cafres, brancos, maratas, e mouros.

(…)

Seus meigos olhos, que a foder ensinam,

Té nos dedos dos pés tesões acendem;

As mamas, onde as Graças se reclinam,

Por mais alvas que os véus os véus ofendem:

As doces partes, que os desejos minam,

Aos olhos poucas vezes se defendem;

E os amores, de amor por ela ardendo,

As piças pelas mãos lhe vão metendo.

(…)

Mete mete mais… Ah Dom Fulano!

Se o tivesses assim, de graça o tinhas!

Não viveras em um perpétuo engano,

Pois vir-me-ia também quando te vinhas:

Mete mais, meu negrinho, anda, magano;

Chupa-me a língua, mexe nas maminhas…

Morro de amor, desfaço-me em langonha…

Anda, não tenhas susto, nem vergonha…

Vemos claramente que o mito de Bocage não é verdadeiro. Muitos o conhecem apenas pelas suas corajosas sátiras e poemas pornográficos, assunto que interessa a todos, obviamente. Porém, Bocage, foi um dos que melhor sustentou a poesia na língua portuguêsa, e repito, não muito tempo depois de Camões. Soube enxergar seu tempo e seguir suas angústias. Enxergar o tempo pode ou não ser uma “função” poética, uma necessidade do artista, seja ele qual for. Creio que depende muito da necessidade e um pouco de angústia, esta sim, fundamental.

texto “A necessidade contemporânea” no blog http://pedrolago.blogspot.com

SONETO IX (MARGINAIS)

Arreitada donzela em fofo leito

Deixando erguer a virginal camisa,

Sobre as roliças coxas se divisa

Entre sombras sutis pachocho estreito:

De louro pêlo um círculo imperfeito

Os papudos beicinhos lhe matiza;

E a branda crica, nacarada e lisa,

Em pingos verte alvo licor desfeito:

A voraz porra as guelras encrespando

Arruma a focinheira, e entre gemidos

A moça treme, os olhos requebrando:

Como é ainda boçal perde os sentidos;

Porém vai com tal ânsia trabalhando,

Que os homens é que vêm a ser fodidos.

Um dos grandes admiradores e defensores de Bocage foi Olavo Bilac. Em 1917 numa conferência no Teatro Municipal de São Paulo, Bilac afirmou que Bocage “era o melhor metrificador da poesia portuguesa“. Depois, sobre o tempo em que viveu Bocage e da produção de seus contemporâneos, disse que “em Portugal, a arte de fazer versos chegou ao apogeu com Bocage e depois dele decaiu. Da sua geração e das que a precederam, foi ele o máximo cinzelador da métrica. A plástica da língua e do metro; a perícia do ensamblar das orações e no escandir dos versos; a riqueza e graça do vocabulário…” e por aí vai. Palavra de poeta.

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A MACACA

Nos serros do Brasil diz certo autor que havia

Uma namoradeira, uma sagaz bugia.

Milhões de chichisbéus pela taful guinchavam,

E por não terem asa, o rabo lhe arrastavam.

Qual, caindo-lhe aos pés de amores cego e louco,

Nas cabeludas mãos lhe apresentava um coco;

Qual do açúcar brilhante a sumarenta cana;

E qual um ananás, e qual uma banana.

Ela com riso astuto, ela com mil caretas,

Lhe entretinha a paixão, lhe ia doirando as petas;

Os olhos requebrava ao som de um suspirinho:

A todos prometia o mais fiel carinho,

E, se algum lhe rogava especial favor,

À terna petição dizia: “Sim, senhor.”

Mas com muita esperança o fruto era nenhum,

E os pobres animais ficavam em jejum.

Leitores, há mulher tão destra e tão velhaca,

Que nisto não ganha inda a melhor macaca.

Um dos estudos mais completos sobre a vida de Bocage foi feito por Teófilo Braga. No estudo, o autor diz que o povo português só conhece dois poetas: Camões e Bocage. De Camões sabe a lenda do seu amor pela pátria e, de Bocage, repete uma ou outra anedota picaresca. Diz entretanto que que Bocage “é o representante mais completo do século XVIII em Portugal, com o seu erotismo e bajulação áulica, com a galantaria improvisada e com os lampejos revolucionários”.

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ASPIRAÇÕES DO LIBERALISMO, EXCITADAS PELA REVOLUÇÃO FRANCESA, E CONSOLIDAÇÃO DA REPÚBLICA EM 1797

Liberdade, onde estás? Quem te demora?

Quem faz que o influxo em nós não caia?

Porque (triste de mim)! porque não raia

Já na esfera de Lísia a tua aurora?

Da santa Redenção é vinda a hora

A esta parte do mundo, que desmaia:

Oh! Venha… Oh! Venha, e trêmulo descaia

Despotismo feroz, que nos devora!

Eia! Acode ao mortal, que frio e mudo

Oculta o pátrio amor, torce a vontade,

E em fingir, por temor, empenha estudo:

Movam nossos grilhões tua piedade;

Nosso númen tu és, e glória, e tudo,

Mãe do gênio e prazer, oh Liberdade!

É um pouco difícil enquadrar Bocage em algum movimento. Como consta, Bocage foi um pré-romântico e um pós-barroco. Este úlitom quando evoca deuses, ninfas, elementos de água, vegetais e etc, presente em muitos de seus poemas. O escritor José Lino Grunewald, afirma que “esse barroquismo de Bocage deságua, muitas vezes, em imagens já de caráter rococó – expressões que muito se afinam com o que posteriormente fizeram os grandes seresteiros do Brasil no final da década de 1920”. Essa dificuldade em enquadrá-lo, para mim, torna o poeta mais interessante, pois não se criam imagens, apenas uma incerteza do que virá e um certo espanto, fundamental para poesia, fundamental.

texto “Frio” no blog http://pedrolago.blogspot.com

NA SOLIDÃO DO CÁRCERE

Quando na rósea nuvem sobe o dia

De risos esmaltando a Natureza,

Bem que me aclare as sombras da tristeza

Um tempo sem-sabor me principia:

Quando por entre os véus da noite fria

A máquina celeste observo acesa,

De angústia, de terror a imagens presa

Começa a devorar-me a fantasia.

Por mais ardentes preces, que lhe faço,

Meus ais não ouve o númen sonolento,

Nem prende a minha dor com tênue laço:

No Inferno se me troca o pensamento;

Céus! Porque hei-de existir, porquê, se passo

Dias de enjôo, e noites de tormento?

Em 1804 começou a crise de sua doença. Bocage tinha um aneurisma da carótida que se desenvolvia cada vez mais. Bocage morreu no dia 21 de dezembro de 1805, em Lisboa. Sua obra percorre mais de duas mil páginas sem contar com seus poemas marginais, que vimos aqui deliciosamente. Bocage viveu apenas 40 anos, onde escreveu sobre quase tudo e nas circunstâncias mais variadas. No dia 15 de setembro, dia do seu nascimento, é feriado municipal em Setúbal. Vale o estudo deste grande poeta da língua portuguêsa e fã da atmosfera brasileira.

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DITADO ENTRE AS AGONIAS DE SEU TRÂNSITO FINAL

Já Bocage não sou!… À cova escura

Meu estro vai parar desfeito em vento…

Eu aos céus ultrajei! O meu tormento

Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura

Em prosa e verso fez meu louco intento.

Musa!… Tivera algum merecimento,

Se um raio da razão seguisse, pura!

Eu me arrependo; a língua quase fria

Brade em alto pregão à mocidade,

Que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino fui… A santidade

Manchei!… Oh! Se  me creste, gente ímpia,

Rasga meus versos, crê na eternidade!

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