João José de Melo Franco

João José de Melo Franco nasceu em Barretos, interior de São Paulo, no dia 10 de agosto de 1956, às 10:30 da manhã. Filho de Àlvaro e Vera de Melo Franco, o nascimento se deu na casa dos avós maternos. Dois anos depois, muda com a família de Barretos para Indaiatuba, também em São Paulo. Neste mês, teremos a honra de percorrer a poesia de João José de Melo Franco. Vamos lá!

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PÉRIPLO

É noite e as vísceras ainda empurram a máquina de ser.
É noite e o ser insiste , víscero, no coexistir.
É noite e a noite sonha e os sonhos insistem em vir.
É noite e ser ou não ser redunda, é uma velha canção.

Mas, que é a vida senão velha e canção?

Eis aqui… o coração do ator e encena um velho ato…
São velhas palavras, velhas roupagens.
Não resolvemos, persona, o que fomos nem o que
seremos.
Ser, não ser, talvez o nada…
Morrer, dormir, sonhar…
Morrer, óbvio ato.
Dormir, enquanto persistir.
Sonhar… périplo mar! périplo mar!

Em 1973, João José se integra ao movimento estudantil secundarista, participando ativamente da vida política estudantil. O desenvolvimento dentro da linguagem da poesia se dá já no ano seguinte, quando, tendo lido, apreendido e definido como base de sua linguagem os poetas Vinicius de Moraes, Mário de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Fernando Pessoa, Augusto dos Anjos e Rilke, publica seus primeiros poemas no jornal do Centro Acadêmico do Colégio Equipe. Também nessa época, paticipava ativamente do Movimento Cineclubista, que realizava sessões com filmes contra a ditadura.

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GLÓRIA

Porque só tu destruiste todo rastro de incerteza
e jogaste fora o coração como um caco de xícara

e o chá derramado como sangue
sobre o livro de Maiakovski
e as contas do colar de falsas pérolas
pelo chão de madeira tão clara e escorregadia

A mancha de sangue é um marco no tempo
se teceis tudo em comparação
“isso como aquilo”

Como rosas, meu bem, abandonadas no jardim,
sufocadas, desfolham como olhos e lágrimas
e já não podem seus espinhos perfurar meus dedos

O amor, minha querida,
é como o corpo de Maiakovski balançando
na sombra da corda de Iessenin

Reprodução de mundos!
as pérolas
e o caos lá onde esteve o coração

Ó Glória! Ó Esperança! Ó Glória!
O espírito vive por antecipação
na espera de um redentor!

Os anos setenta são de muita agitação na vida do poeta. Em setenta e cinco conhece o cineasta paulista Roberto Santos, com quem realiza vários trabalhos e do qual será amigo e colaborador até sua morte em oitenta e cinco. Porém, no mesmo ano, João José é detido pelo DOPS, após sua participação na missa de sétimo dia do jornalista Vladimir Herzog, assassinado pela ditadura, e é fichado por suspeita de participação em movimentos de esquerda, inadmissíveis para o Governo Militar.

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CERIMÔNIA

Alhures onde estará agora
como se fora uma bola de fogo
Os corredores negros, tão negros que as paredes
se enlaçam no nada e desaparecem
e teu corpo, incandescente, brilha e refulge de orgulho
cósmico
entre ataúdes que navegam solenes no vácuo
perpétuo dos amanhãs
Este universo incriado, que habitas em meu sonho,
dá a ti, poeta morto, novo rumo biológico
se te entrelaças em meus átomos, como ideia,
e preenches meu corpo pelo simples ato da aspiração
Em cada ato de minhas mãos refulge o brilho do teu
olhar,
o pendor de tuas paixões, o calor de tuas amadas

e quando asado verso arremesso às paredes do universo
como seta de sentido e verdade e beleza
é a teu corpo que procuro

Átomos do universo, encontrai-nos!
na pobreza simples (abastada solidão)
na saúde de Cristo e Dioniso, na saúde
dos fazedores de vinho
e à doença atira as carnes
quando a morte, derradeira cerimônia,
de belos sonhos nos separe!

No final dos anos setenta, mais precisamente em setenta e sete, o poeta integra o grupo estudantil Refazendo, que se opunha ao grupo radical Liberdade e Luta. No mesmo ano, João José conhece aquele que seria seu grande amigo, o poeta Juvenal Juvêncio, com quem tem forte relação literária. Ainda estudando Cinema na USP, João José ingressa no curso de Filosofia da USP. Definitivamente seu caminho intelectual ganhava corpo. Os poemas dessa semana foram extraídos do livro Périplo, com poemas de 1984 a 1994.

poema O Grande Livro no blog http://pedrolago.blogspot.com

A VIZINHA

As mãos, intocadas,
apanham o ar da noite gelada.
À janela expõe o coração singelo
embora a idade não lhe permita a doçura
e a meiguice do olhar.
Dizem: não fica bem para uma mulher,
depois de certa idade, carregar nos olhos
o fulgor das flores de laranjeira.
No ar gelado do cômodo solitário
os bicos dos seios endurecem e o
oco vão entre as pernas é como se não portasse
a áspera cor de certos desejos…
Oco no olhar, é como se não houvesse
úbere e já não pudessem cantar
os pássaros na primavera.
No entanto, porque é mulher, e porque
a cerca a cidade, que também é feminino,
aplaca o tempo de um só golpe
com o simples sal do chorar.

No início dos anos 80, João José publica seu segundo livro Esse louco desejo, um livro que homenageia os poetas do Modernismo. Conclui o curso de filosofia em 81, publica seu terceiro livro Amor-perfeito, em 82, e conclui o curso de Grego e Latim. Nesse momento houve uma guinada intelectual, a partir de então, João José percorreria uma linha metafísica em sua linguagem. Vai para França, onde faz mestrado, estudando os fenômenos linguísticos, tendo como base a canção de gesta Chanson de Roland.

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OCASO

Hoje, uma poderosa tristeza,
pantanosa, irremediável, invadiu-me a alma.
Ou, mais, brotou dela, translúcida e terrivelmente bela.
E cresceu tão rápido, tão segura de si,
tão lamentavelmente cega,
rasgando meus pensamentos mais ternos.
Não era a morte,
pois a morte me é terna neste entardecer desértico,
em que caminho para além das costas rochosas,
entre intervalos de areias lambidas pelo mar.
Que maldição a tua,
que vem me visitar no funeral de mais um dia,
em que incansavelmente entrego-me absorto de agonia,
mal dando para colher-te as lágrimas de viúva,
tão desejada intocada esposa.
Abrupto me vem do norte o chamado,
de pôr minha cabeça a prêmio,
na guilhotina prateada pela clara luz do Cruzeiro,
estica-se o pescoço pronto para o abate,
a noite, o torniquete e, por fim,
o alarde das aves cantoras,
que me bicam o cérebro inerte,
mergulhado na seca sopa de mais um ocaso,
o esposo de uma deusa dolorosa,
que chora de seu amor.

A metade dos anos 80 foi de estruturação intelectual e de expansão, em virtude do término de alguns ciclos acadêmicos e de viagens para a Europa. Em 84 conclui sua tese de mestrado e segue para a Itália, onde estuda semiótica na Universidade de Bologna. Enquanto isso, é publicado no Brasil o Pequeno Dicionário de Termos Literários, essencial peça para a compreensão do universo literário, tendo como sabe a literatura brasileira com especial devoção à poesia. Não fica por aí.

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CAFÉ COM MEU PAI

Debaixo de um pé de café
sepultei o corpo de meu pai,
com o rosto voltado para as ramas,
de modo que seus olhos
seguissem sempre num horizonte verde,
e as narinas, um cheiro doce,
capaz de matar sua sede.
Também para que tivesse sombra nos dias de sol
e muitos companheiros de viagem,
como ele, plantados no cafezal.
Colhe agora o que deu em vida
e o que dele ficou inútil, o corpo,
assim continua a ainda palpita.

Agora que envelheço,
bebo café de outro jeito.
Não só para abrandar o peito,
não só para acender o pito,
mas para rever seu rosto,
um cafezal, e assim existo.

Em 1985, João José segue para a Alemanha, onde inicia doutorado com o linguísta Eugenio Coseriu. É publicado no Brasil o Dicionário Universal Três, com biografias de personalidades da história universal, escrito em parceria com seu amigo Juvenal Neto e com Ignácio de Loyola Brandão, e que será, ate 2006, sua última publicação. Conclui o doutorado em 87 e retorna ao Brasil, onde tentará até 91, a carreira como professor.

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MANHÃ

Esta manhã nasceu do silêncio.
Nenhuma ave gorjeia, nenhum vento agita a onda, o mar
é um espelho.
Ouço distante teus passos pela casa.
Teu sol ameaça levantar-se, lança um tímido amarelo
entre os verdes além da janela e o mar…
Sei que estou ali, apoiado no beiral, esquecido da
paisagem
os olhos assistindo, admirados, o agitar de tuas mãos,
e o faro a ir e vir do teu perfume ao odor do café,
nascendo de uma medida perfeita,
como se soubesses quantas partículas de pó negro
cabem exatos numa gota de água quente.
E te sinto enrubescida de saber que meu olhos te seguem.
Vejo-te preocupada de não mostrar o quanto sentes,
de modo a evitar que o amor desabe sobre ti
e te paralise os afazeres,
numa tão grande alegria que poderias gritar o teu espanto
e chorar todas as manhãs em que não tiveste a chance de a
isto renunciar.

m 1994, João José abandona a escrita e se volta completamente para a publicidade. Ficaria 10 anos sem escrever, dedicando-se à leitura e a estudos sobre a psicologia de Jung. Agora em 2005, volta a escrever poemas, e seu envolvimento na carreira publicitária diminui, contribuindo apenas esporadicamente. Em 2006, muda-se para o Rio de Janeiro, onde conhece a poeta e editora Thereza Christina Rocque da Motta, com quem começa a trabalhar como editor pela Ibis Libris.

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DIÁRIOS DE AMOR PERDIDO XIII

Ele esperou…
Tanto, tanto, tanto…
E esperou de tal modo,
como se fora sua sina e o mais íntimo fado,
que não mais lembrava quantas vezes virara a ampulheta.

E a virara tanto, tanto, tanto…
que apagou a hora e afastou o pranto,
até se transformar no girar dessa ampulheta e, depois,
na areia que caía e recaía e, finalmente,
no deserto de onde trouxeram a areia.

Assim, homem-deserto,
na mais negra de suas noites,
fitou perplexo a abóbada repleta de astros,
onde divisou as constelações copulando há bilhões de
anos,
muito antes da espécie humana florescer sobre a terra,
então imarcescida…

Assim, homem-deserto,
entendeu, pela primeira vez, que a vida é portal e passagem
e, por isso, já passado…
Que do passado a saudade nos aferra e aprisiona
e o tempo é seu cárcere.

Todos os homens do mundo já foram esse homem.

Após 20 anos de ausência no mercado editorial, João José, morando no Rio de Janeiro, publica O mar de Ulisses (cujos poemas vimos na semana passada), livro este que tem como base a Odisséia de Homero. Em 2007, publica Diários de Amor Perdido (poemas desta semana), com poemas escritos na Alemanha e entre 2006 e 2007.João voltara definitivamente ao mercado editorial, publicando essencialmente poesia.

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ÊXODO

Reconstruo meu cérebro com o que restou de ti,
como se caminhasse nas ruas
com a massa inerme nas mãos.
Como se em mim já não coubesse mais
o instrumento com que organizei paisagem
que fiz com o que não pude ver,
como se nada mais sentisse do que fiz ou fui.
Assim, não parece tão má a enorme desesperança,
em que o desesperar não mais aflige a palavra amor,
que agora flutua inerte entre meus dentes sem fome,
como se soubessem de uma morte sem medo,
e para ela sorrissem, vazios,
como no vazio me dissipo,
através do amor que por aí deixei.

João Jose diz que “nunca assinou manifestos literários, nem viveu vanguardas”. Foram os “bondes que perdeu”, disse ele no prefácio de Homens do Povo, livro ainda inédito. Nos anos 70, o jovem João comprava seus livros na Livraria Ler, na Praça da República, onde tinha crediário. Também comprava livros no Sebo Coimbra, na Benjamim Constant. Tudo em São Paulo. João elegeu como sua vanguarda literária os poetas Vinicius de Moraes, Mário de Andrade, Drummond, Bandeira, Murilo Mendes, Jorge de Lima e Augusto dos Anjos, pois “era o que tinha”. Veio a saber o que era Concretismo no final dos anos 70.

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ACEITAÇÃO DA DOR

Estive à tua porta.
Eu tinha sede e me era cara a tua imagem.
Eu abri os olhos e não te vi.
Já não havia ali a tua imagem.
Eu devia ter vivido quando ainda havia a coisa que vive.
Agora procuro e estou no escuro de um portal
que não é mais o teu, mas o meu.
Por isso estou só e sinto medo por tudo que não posso ver.
Há um terror nesta vida que só vem na solidão.
Eu senti que sempre foi assim, mas jamais me entreguei.
Agora, vem como a cara da morte, que não pode ver.
Quero gritar, mas tornou-se oco e sem sentido.
No entanto, é preciso caminhar pelo vale da morte,
é preciso morrer sem pronunciar ais,
reencontrar na miséria de tantos caminhos já percorridos uma
chama,
saber que mais um caminho veio e não há ninguém onde
descansar.

Estrela que tudo reúne,
a dor começou a caminhar.
Ergue o fogo de tuas labaredas para além do visível,
e permite, por hora, ser um pálido reflexo
do fulgurante brilho, que espero, mísero e inferior,
ao fim tocar.

João diz que “não sabe a qual geração de poetas pertenceu”. Tendo sido um rapaz pobre, e por isso, objetivo nos estudos, e ainda ter tido que trabalhar desde cedo, não teve muito contato com a chamada Geração Mimeógrafo que surgia nos anos 70, mesmo tendo conhecido alguns poetas. Sua grande influência foi o poeta Juvenal Neto, única figura com quem, de fato, compartilhava ideias sobre poesia e literatura. Porém, o amigo teve morte precoce em 1991.

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OGUM

A espada, o arado e a enxada – de ferro ele fez.
A espada previne,
o arado rasga a terra,
a enxada tanto junta quando cobre.
E então há paz, a terra é arada
e é deitada a semente.
Quando Iansã faz sexo, chove.
E é assim que sobre o pacífico dom da terra
o fruto vem e alimenta o homem.
E é porque o fruto vem, que dão de fazer guerra,
a maldição de que tudo o que dá vida,
dá morte também.
A espada, pendor de justiça, é um medo que vira arma,
e para ela não há sangue que baste
para cobrir o campo que o arado fez
e sufocar a semente que a enxada bem escondeu.
Em toda paz há um gosto de sangue sobre ferro
e o nome disso é fome.

João José diz que o máximo de envolvimento que teve com um conjunto de ideias, ou grupo literário, foi a Metafísica. Leu Pessoa, Rilke, Eliot, Pound, Éluard, Valéry, os filósofos,Wittgenstein, Heidegger, Nietzsche, clássicos como Homero, Sapho, Píndaro, Eurípides, Sófocles, Virgílio, Ovídio, e os modernos, Pedro Abelardo, Vico, Bruno, e Balzac, e Goethe, e Joyce, e Camus, e um sem fim de autores e obras. Mais sobre a Metafísica na semana que vem.

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xangô

Ulisses, rei e guerreiro grego, que vagou por vinte anos
enfrentando fortes batalhas e vivendo gloriosas aventuras,
amava somente a uma mulher, a doce e fiel Penélope. Xangô,
guerreiro e rei de Ifé, amava logo três: Iemanjá, a mãe, Oxum,
a amante, e Insã, a companheira. E por elas, Xangô, como
Ulisses por sua Penélope, lutava até. Ulisses e Xangô, ambos
reis, guerreiros e astuciosos. Mas isso é tudo que os assemelha
e em nada mais são par a par. Porque Ulisses amava somente
a uma mulher e Xangô amava logo três. Porque Ulisses, que
muito lutou, e que por isso virou semideus, entrou para a
história e de suas lutas faz inspirar, mas Ulisses já não luta,
Ulisses não luta mais. Já Xangô, que também muito lutou,
ainda segue a lutar, e luta ainda pelas três amadas, e é por isso
que ainda vive e é o santo desse lutar, que todo homem bem
conhece, que é a luta do amor, que é a luta do amar. E essa é
a justiça de Xangô, a justiça do amor, que todo homem bem
conhece e, como o próprio Xangô, crê que por ela vale brigar.
E essa é uma briga que todo mundo entende. Não é à toa que
Xangô, comparado a Ulisses, é muito mais popular. Ao menos
aqui, por essas bandas, em que por tudo se luta e na luta segue
a sonhar.

Sobre sua relação com a poesia e a metafísica, João José diz que: “Lidar com uma poesia, que tem em sua base o homem real, de carne e osso, mas que também toma o corpo da humanidade como pano fundo, dando a ele um senso comum que transcende o imediato e o eleva à condição de catalisador de forças mais amplas, de sentido cósmico e espiritual, é o mesmo que fazer o caminho inverso das religiões, que, no mais, desejam sempre levar o homem a deus.” Hoje, dois poemas de Os Homens do Povo, livro ainda inédito.

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GEOGRAFIA

Não vai ler além e o que a paisagem sempre esconde,
para lá da janela, em que não há mundo,
só o desenho ideal da tarde em morte,
as palavras que se perdem no vôo dos pássaros,
inclassificáveis pela distância,
e logo os olhos
estarão a obliterar a geografia do que se não pode tocar
com os anseios do ego-olhar.

Em sombras, geografia vã de tua essência,
a casa inútil em que paralelamente existes,
como paralelas e sem sentido são as janelas nas paredes
e o mundo nelas recortado, aparentemente belo e sem dor,
adornado pelo alarido de crianças e o latir dos cães.

Na outra janela, a outra paisagem,
menos colorida, mais profunda, aceno de eternidade,
a misteriosa cortina dos sonhos,
que fechamos à espera.

CIDADE

Na madrugada bateram em minha porta.
Eram os mortos.
Clamavam por algo que pudesse lhes matar a sede.
Eu bem sabia não ser água
o que havia de matar-lhes a sede.
Eu bem sabia a sede que sentiam
e que água alguma há para matá-la.

Era o cheiro da cidade o que queriam,
o cheiro da fuligem,
o senso pleno na vertigem dos cheiros
nascidos de milhares de fontes de suor.
O cheiro de suas casas,
dos armários entulhados de suas coisas,
que, sem eles, parecem inúteis e são dadas,
por misericórdia, ou para os esquecerem,
e para se livrarem de seus cheiros mortos.

Homens que foram, só agora o sabem
do faro que os guiou nessa vida de porco-odor.
E porcos que foram, só agora se sabem
seguidores da vida e de seu acre odor.
Homens-porcos que foram,
farejam agora o verdadeiro cheiro do corpo,
do seu amor-porco, do seu apego pútrido e louco,
matéria de sua carne histórica,
nos chiqueiros quânticos dessas ruas insones.

Esquecidos habitantes dos umbrais…
Por seus guinchos bestiais abro meu peito e canto,
um hino de horror a esta fétida morada,
testemunho de uma alma incurável e franca,

meu bafo poético, podre por perenidade,
pá de cal, grãos de terra, pétalas semimortas,
e minhas palavras, olfato e tato, minha alavanca.

Breve história: Conheci João José no café de uma livraria no Leblon. Eu estava um pouco angustiado por não ter recebido resposta de uma editora para o projeto de meu livro. Ele estava sentado com a poeta e minha amiga Juliana Hollanda, que o me apresentou. Contei a ele sobre o livro e ele me disse: “manda para mim que resolvo em dois tempos pra você”. Dito e feito. Além da edição do livro, uma amizade se iniciou. Através dele li Virgílio, Luis de Góngora, Horácio, Thereza Christina Rocque da Motta, Afonso Henriques Neto, Alphonsus de Guimaraens Filho, Ovídio e muito de mitologia grega. Mais ou menos por aí.

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CADERNO DE ANOTAÇÕES

Nada cumpri na vida senão em palavras.
As árvores que plantei feneceram,
ou por outras, mais afeitas ao solo,
foram ensombreadas e finalmente esquecidas.
Os filhos, não os tive, ou, talvez não os saiba,
são como o pai, errantes viajantes de desertos.
Os livros foram feitos, mas não se fizeram,
como se fazem a si mesmos os livros,
e até os vi vendidos por peso em troca de algum dinheiro,
e este, sim, talvez tenha dado alimento a alguém.

Hoje, ante as inúmeras quedas do caminho,
ou a contínua e desafortunada busca do ouro,
conheço bem mais o chão,
ou, talvez, a ele me assemelhe mais agora.
Hoje, que me sei mais só,
vejo-me livre de ter gerado uma prole de solitários,
ou, talvez, inconscientemente, os tenha por mortos,
e, assim, de modo inconsciente, ainda os ame.
Hoje, a lide com as palavras não mais se sabe livro,
e quer seja devotada indiferentemente
a traduzir a crueldade ou a beleza da vida,
busca instintivamente, modo super-humano,
a simplicidade de um caderno de anotações,
onde as palavras, perdidas as isenções da poesia,
e adquirida a translucidez no rosto e no espelho,
fluem como sangue, o rio-tinta.

Eis que chegamos ao final de mais uma antologia. Nesse mês, conhecemos um pouco da poesia de João José de Melo Franco, poeta metafísico, editor e amante do Rio de Janeiro. Veio de Barretos, estudou semiótica, grego e latim, e que se considera sem geração. Semana que vem entraremos num outro universo poético, com outras proposições, outras cores, outras facetas da poesia, enfim, outros poemas. Até!

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ORAÇÃO AOS POETAS DO AMOR

A minha amiga, Glaucia Dunley.

Quisera fossem as orações tristes poemas de amor.
Assim, mesmo sem amor, os amantes teriam seu consolo
e certa esperança de que curassem as feridas
as palavras poéticas, proferidas como se fossem as de todo o povo.
Não é o mesmo que prometeram os teus santos, senhor?
Agora e na hora de nossa morte?
Então, não morre também o amor?
Os poemas de amor, os mais tristes, são como o animal sacrificado,
que por nós morre, e nos purifica e, embora breve,
nos dá um chão no céu, para nossos passos incertos
e nossa fé apócrifa, como a vossa mão, senhor,
em nossos enganos, a redenção de nossos sonhos,
mesmo a quem nunca o encontrou, o amor,
e nunca o deixou de procurar, mesmo o amor apedrejado,
e mesmo o amor traído, que nos cegam o coração,
cabem todos em um poema triste de amor,
ainda que não tenha a cura, nem o mistério do perdão.

4 Comentários

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4 Respostas para “João José de Melo Franco

  1. Olá My Friend !!!

    estou tentando te achar no facebook,
    quer ser meu amigo???
    bjs

    Joely

  2. Olá, queria te agradecer por ter produzido o excelente trabalho sobre a poesia dos Goliardos. Tive também um encontro com a poesia deles e me fascinei. Também sou poeta e vivo hoje em Buenos Aires, Argentina, mas sou carioca. No Rio fazia parte de um grupo de poetas, mas todos eram muito sérios e não gostava tanto. Aqui também os poetas são muito sérios e todos parecem ter aquela velha idéia de que os poetas vivem enclausurados suspirando por suas musas. Nunca acreditei nisso, mas sim numa poesia viva, pulsante. Depois que tive contato com a poesia goliarda e depois com o seu livro (pois há muita informação duvidosa na internet) tive a certeza que estava no caminho certo. Agora graças ao seu livro tenho um grupo de poesia aqui e fazemos eventos num bar, misturando música e poesia e nos chamamos GOLIARDOS!
    Então parabéns pelo trabalho do livro e pelos poemas. Espero que possamos ter mais contato. Tenho também um blog e a partir daí estou querendo fazer um movimento de poesia pela internet com vários poetas conectados trocando idéias. Quem sabe se possa mudar alguma coisa com isso… Bem, seria uma honra contar com sua visita no meu blog: http://blogdomarlos.blogspot.com
    Um forte abraço e novamente parabéns!

  3. João José

    Marlos, passou-se tanto tempo… Obrigado pelas plavras… Espero conhecer-lo pessoalmente. Talvez em novembro de 2012!

    Grande abraço!

  4. Philippe Renaud

    Meu querido amigo e irmao! Sou eu, Philippe Renaud. Acabo de ler teu “Xango.” A conjuncao das mitologias Greca classica e Yorubana tambem me inspiraram num romance que, talvez eu acabe um dia se DEUS me deixar. Sera longo, e nao sera para publicar (razoes pessoais). Agora sim! Me sinto honrado de ler revelacoes (EREIGNIS! LICHTUNG!) de um verdadeiro laureato. Como vai meu irmao… Dez anos passaram… Abraco Philippe (me perdoe meu teclado Norte Americano).

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